terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

Evocação: Lília da Fonseca


Gostaria de repegar no meu álbum de afeições particulares. Por diversos motivos, a vida vivida aproximou-me de pessoas estimáveis que me apraz recordar agora que pouco espaço nos resta do que anda por aí consagrado aos heróis mediáticos do tempo efémero. Recordo-as já desaparecidas, vitimadas pelo cutelo da dupla morte que nem tento esconjurar.


Lília da Fonseca é uma dessas pessoas amigas. Nasceu em Benguela, Angola, em 1916 e morou prolongadamente em Lisboa, onde faleceu em 1991. Maria Lígia Valente da Fonseca Severino, seu nome civil, pouco conhecido foi mas o nome literário que adoptou chegou a ser, sobretudo na segunda metade do século XX, bastante apreciado e querido pelos leitores de jornais, revistas e livros em Angola, Moçambique e Portugal. Destacou-se ainda por ter sido a primeira mulher que teve a coragem de concorrer às eleições legislativas para a Assembleia Nacional, em 1957, como candidata pela Oposição Democrática.
Lília da Fonseca foi jornalista (começou em “A Província de Angola”) e escritora. Fundou “Jornal Magazine da Mulher” (1950-56), em Lisboa, que dirigiu, e colaborou em numerosas publicações, como “Século Ilustrado”, “Mundo Português” e “Seara Nova”. A qualidade geral da sua intervenção cívica evidenciou-a como palestrante activa. Na literatura estreou-se com o romance Panguila, 1944, a que se seguiu Poemas da Hora Presente, 1958, Filha de Branco, contos, 1960, e, em 1961, O Relógio Parado, romance que o regime da ditadura proibiu mas que a autora reeditou após a democratização do país.
Porém, foi como autora de literatura infanto-juvenil que Lília da Fonseca especialmente se distinguiu. Publicou mais de trinta títulos, conquistou o prémio João de Deus em 1960 e em 1963, e a colecção “Carrocel”, que dirigiu, teve o apoio da Fundação C. Gulbenkian. Fundou ainda o Teatro de Branca Flor, em 1962, de fantoches, com peças e bonecos também de sua autoria.
Em Lília encontrei a vontade que quer melhorar as misérias do mundo, vontade utópica, evidentemente (e não será a utopia alimentada por alguma poesia?), mas pulsão imperecível. Com ela, com a sua amizade e com os seus livros entrei na aventura que me deixou a experimentar escrever para crianças. O caminho faz-se a andar e é pelo sonho que vamos...

Todavia, anotar o perfil da vida e obra de Lígia numas poucas linhas de extensão limitada é problemático e frustrante. O essencial fica talvez sumariado. A faltar ficará o restante, o que com ela desapareceu. [Foto: Lília da Fonseca no Porto (1970?).]

1 comentário:

Manuel Tomaz disse...

Em meados da década de 6o trabalhava eu numa livraria em Lisboa. Um dia dois agentes da PIDE entraram na loja e entre diversos livros apreendidos, um tinha o título "O Relógio Parado". Fizeram o respectivo auto-de-apreensão e levaram um saco cheio de livros. Há pouco tempo, numa rotina pelos alfarrabistas, encontrei o referido livro. Li-o numa noite e o mais curioso é que o livro descreve uma situação que se passa numa aldeia nos arredores de Leiria com que eu me identifico, pois nasci em 1937 e cresci naquela zona, e vivi as carências que o livro descreve.
Os meus cumprimentos,
Manuel Tomaz
mstomaz@sapo.pt