terça-feira, 6 de maio de 2014

A edição literária, hoje (II)

Será verdadeiramente estranhável o caso de um autor literário que coloca os seus livros em edições digitais? Vale o mesmo que dizer: serão as edições digitais ainda hoje bizarrias tecnológicas para uns maníacos do cubo de Kubrick desejosos de outro divertimento quebra-cabeças? Concordemos: talvez não tanto, mas, ainda assim… 
A edição de livros impressos em papel prossegue sem quebra notória; essas edições, na maioria dos casos, nem entram no mercado normal, os autores pagam-nas e por vezes vendem-nas, as tiragens baixaram para níveis ridículos. Contrapartida: reduziu-se drasticamente o número dos autores que as editoras comerciais aceitam publicar (porque serão mediáticos ou “têm nome”, prometem vender muito e depressa) quando, por outro lado, se multiplicam em chusma uns curiosos tão afoitos que pagam a publicação das próprias obras para se declararem também “escritores”. Entretanto, os efeitos da crise no país agravaram brutalmente as dificuldades da distribuição e do comércio geral dos livros. 
Nesta situação, o que em primeiro lugar pode estranhar-se não será o caso do autor de ebooks (edições digitais); será, sim, a quantidade impressionante dos títulos novos, livros impressos em papel para escassos leitores. A maioria desses novos títulos, realmente, não traz chancela de nenhuma das editoras comerciais em voga que açambarcaram o mercado transformando o livro em vulgar mercadoria com prazo de validade marcado pela produção do livro seguinte. Nesta situação desastrosa, surpreendente será todo o autor literário experiente que, sem editora como um qualquer amador estreante, se resigna em desespero de causa a publicar obra pagando a respectiva edição (que, humilhado, terá de vender). 
Arrisca pouco quem vaticina que os livros em edição digital vão expandir-se imparavelmente. Sinal dessa expansão deu-o recentemente a Porto Editora ao anunciar que ia incluir também ebooks no seu catálogo. A concorrência obriga… 
Para um autor de livros impressos em papel com edições fora do mercado, ou inéditos, as vantagens oferecidas pela edição digital são flagrantes posto que modestas. Sendo “edições do autor”, livram-no de tropeções advindos de contratos mal redigidos, defeitos de edição incontrolados, deficiências da distribuição, etc. Único senão: se o acesso ao livro for grátis, o autor abdica do seu rendimento. 

Sobrelevando o mercado (em troça, em vingança?), o livro digital ilude as falhas da distribuição melhorando-a até ao extremo limite. Pode encontrar leitores que o queiram em qualquer canto do mundo e, se for gratuito, reconduz a literatura à fonte original da ars gratia latina. Desmaterializando tudo, livro e dinheiro, estará a redimir-nos de tanto materialismo ético desumanizador… [Imagem: painel cerâmico de Rafael Bordalo Pinheiro - rãs num charco e ramos floridos; início do séc. XX]

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