terça-feira, 13 de maio de 2014

Com o prego no sapato

No meu tempo os sapatos eram mesmo de outro tempo. Fazia-os o artesão sapateiro, cosendo a pele às solas e fixando os tacões com pregos. Acontecia então que alguns destes sobressaíam, comprimidos por alguma pedrinha do chão contra o calcanhar do pé calçado.
O caminhante, dizia-se, ficava com o prego no sapato (que não era exactamente o mesmo, outrora e hoje, do que ter a pedra no sapato). Mas tinha um remédio claro e fácil. Parava, descalçava-se, apalpava com a ponta do dedo a protuberância afiada, e logo ali, com uma qualquer outra pedra, batia na ponta até a sumir e poder retomar a marcha.
Todavia, nem toda a gente com o prego no sapato restabelecia logo ali o conforto da sua marcha recorrendo ao remédio tão fácil e acessível. Adiava o gesto de se deter e prosseguia a coxear, tentando não inclinar o seu peso maior sobre a perna onde o prego feria a cada passo o calcanhar. Chegado a casa, aliviava-se: atirava o sapato para um canto e esquecia-se de pegar num martelo para compor o desarranjo, pois tinha mais em que pensar.
Quando tornava a calçar aquele sapato, o acontecido varrera-se da memória da gente. Saía, caminhava e, de início, sem novidade. Mas logo o calcanhar ferido transmitia ao cérebro, lá em cima, no topo, o conhecido sofrimento que punha o caminhante outra vez a coxear.
Vendo isso, outra gente acudia, solícita, a interrogar o sofredor. E assim, pela repetição do caso, engendrou-se no antigamente uma estória popular que estou a recordar. Contava como o manco caminhante respondia a quem o interpelava: não encontrara ainda seixo à feição, que ia com pressa e não lhe convinha parar… Quando estes argumentos fizeram sorrir a vizinhança, o manco adaptou a resposta.
Que o prego começara a doer-lhe menos. O calcanhar habituara-se ao incómodo, abrira-se no sítio um buraquinho que o alojava. Viam agora que ele (empertigando-se, cheio de força) já quase nem coxeava?
Gloriosamente. Receando qualquer mudança radical que não fosse o fado da sua sorte. Numa viciosa mesmice! [Nota - Esta estória podia entrar na perfeição no conjunto que coligi, o ebook intitulado “Estórias Populares”. Escapou à rede, talvez um dia lá chegue.]

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