terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Antropoemas: “até que…”


O regresso de Alexandre Guarnieri à poesia acontece com um algo epifânico Corpo de Festim. Este seu segundo livro – após Casa das Máquinas, Rio de Janeiro, 2011, que comentei aqui – traz um subtítulo expressivo: Antropoemas. Mas talvez o plural fique ali a sobrar para o leitor capaz de perceber na obra o poema unitário que nela se contém, afinal uma antropogénese poética.
Obra rara, portanto. Não por abolir as maiúsculas dos textos (excepto no poema final) e usar sinais gráficos – barras, parênteses, colchetes, vectores: sinalética pessoal – ou grafar nomes próprios em itálico. A raridade da segunda obra de Alexandre Guarnieri avulta porque evoca as etapas que conduziram ao nascimento da humanidade na natureza, “até que…” 
Sim, “até que…”, na sucessão cataclísmica de fenómenos cósmicos, ou seja, após o big bang primordial, se formou o ambiente terrestre, matriz da vida, no terceiro planeta deste Sol situado numa franja da Via Láctea. Corpo de Festim (inédito, a sair em breve no Rio de Janeiro) consagra o primeiro capítulo ao tema: átomo de carbono e, logo, a sangue, suor e celulose; útero, incubadora, até atingir terra firme. 
O Poema invoca portanto a maravilhosa epopeia do nascimento da humanidade com uma força quase épica que se expande no capítulo seguinte. O corpo vivo, formado por evolução milenar, lembra-me a “casa das máquinas” com seus órgãos internos, filtros, baço, rins, fígado, coração, pulmões, e uma mecânica de fluidos, sangue, suor, lágrimas, saliva, sémen, leite materno, urina, pus, etc., e pele, cabeça, ombros, joelhos, pés, ouvidos, olhos, rosto. De facto, “darwin não joga aos dados, mallarmé sim”… “até que…” 
Os elementos anatómicos são aplicados no Poema de tal modo que aparece construído como um organismo textual dotado de membros e respiração. Logo, o Poema humaniza-se. Mas no terceiro e último capítulo, “vigiar e punir” (onde sobressai o poema “cotodianometria”), sobrevém o trágico desgarramento que a imagem da capa explicita – a degradação do Homem acorrentado. 
Corpo de Festim mergulha finalmente nas tragédias humanas do nosso tempo com expressões de violenta rejeição, repulsa, horror. Cito: “Não há (…) algo que resolva o medo a náusea o mal estar da civilização”, “quando a doença e a cura, indissociáveis siamesas, já são partes da mesma mistura” (pág. 46). Uma saída: “desaparecer de vez” como Houdini, o famoso mágico. 
Alexandre Guarnieri (n. Rio de Janeiro, 1974) tem o cuidado de advertir, em parte inicial da obra, que ali “há páginas em que apenas a aparência é pueril / decifrá-las nem sempre é fácil, há vários níveis de sentido ou, ainda, na entrelinha, o seu sentido” (pág. 9). E tem a consciência de que alguém, “se atravessa a ponte / abdica de um dos lados” (pág. 48). [Nota: os números de página citados são da cópia de trabalho.]

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