O regresso de Alexandre Guarnieri à poesia acontece com um algo epifânico Corpo de Festim. Este seu segundo livro – após Casa das Máquinas, Rio de Janeiro, 2011, que comentei aqui – traz um subtítulo expressivo: Antropoemas. Mas talvez o plural fique ali a sobrar para o leitor capaz de perceber na obra o poema unitário que nela se contém, afinal uma antropogénese poética.
Sim, “até que…”, na sucessão cataclísmica de fenómenos cósmicos, ou seja, após o big bang primordial, se formou o ambiente terrestre, matriz da vida, no terceiro planeta deste Sol situado numa franja da Via Láctea. Corpo de Festim (inédito, a sair em breve no Rio de Janeiro) consagra o primeiro capítulo ao tema: átomo de carbono e, logo, a sangue, suor e celulose; útero, incubadora, até atingir terra firme.
O Poema invoca portanto a maravilhosa epopeia do nascimento da humanidade com uma força quase épica que se expande no capítulo seguinte. O corpo vivo, formado por evolução milenar, lembra-me a “casa das máquinas” com seus órgãos internos, filtros, baço, rins, fígado, coração, pulmões, e uma mecânica de fluidos, sangue, suor, lágrimas, saliva, sémen, leite materno, urina, pus, etc., e pele, cabeça, ombros, joelhos, pés, ouvidos, olhos, rosto. De facto, “darwin não joga aos dados, mallarmé sim”… “até que…”
Os elementos anatómicos são aplicados no Poema de tal modo que aparece construído como um organismo textual dotado de membros e respiração. Logo, o Poema humaniza-se. Mas no terceiro e último capítulo, “vigiar e punir” (onde sobressai o poema “cotodianometria”), sobrevém o trágico desgarramento que a imagem da capa explicita – a degradação do Homem acorrentado.
Corpo de Festim mergulha finalmente nas tragédias humanas do nosso tempo com expressões de violenta rejeição, repulsa, horror. Cito: “Não há (…) algo que resolva o medo a náusea o mal estar da civilização”, “quando a doença e a cura, indissociáveis siamesas, já são partes da mesma mistura” (pág. 46). Uma saída: “desaparecer de vez” como Houdini, o famoso mágico.
Alexandre Guarnieri (n. Rio de Janeiro, 1974) tem o cuidado de advertir, em parte inicial da obra, que ali “há páginas em que apenas a aparência é pueril / decifrá-las nem sempre é fácil, há vários níveis de sentido ou, ainda, na entrelinha, o seu sentido” (pág. 9). E tem a consciência de que alguém, “se atravessa a ponte / abdica de um dos lados” (pág. 48). [Nota: os números de página citados são da cópia de trabalho.]
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