terça-feira, 31 de maio de 2011

Vidas públicas... privadas?

Prometo, não vai ser mais um dos milhentos comentários ao caso de D. S. K., vitimado no seu luxuoso hotel nova-iorquino pelo reafirmado gosto de caçar carninha nova. Os amigos deste blogue sabem da pouca saída que nesta coluna têm os faits divers que fazem manchetes e emocionam os comentadores. Mas a desgraça do então ainda presidente do FMI abalou Paris e, aparentemente, a França inteira, a Europa e a América, pelo que tomo o caso apenas para avaliar até que ponto pode ser privada uma vida pública.
Trata-se de uma discussão centrada nos profissionais da informação que trabalham lidando com governantes, políticos, banqueiros, gente mediática ou mediatizada. Cedo os jornalistas se habituam a enfrentar a questão e a responder-lhe na prática, acatando assim ou negligenciando assado os preceitos do código deontológico aplicáveis a cada caso. E ninguém consegue evitar que esta nova questão, a do dito sr., se enrede e se torne polémica, cruzada por opiniões tão contraditórias quão os interesses em presença.
É preciso varrer a confusão e afirmar doutrina tão justa e exemplar que por si mesma se imponha.  Dispensam-se arrazoados, basta aplicar o simples, o comezinho senso comum. Rareia hoje tanto que surpreende como flor de cacto a colorir o deserto.
A forma como o sistema judicial tratou o sr. D. S. K. suscitou desde logo comparações com o similar de tipo europeu. Este ficou a perder. A justiça norte-americana mostrou ser menos morosa, primando mesmo pela rapidez. Sublinhou, especialmente, que todos os cidadãos são iguais perante a lei e, portanto, tratados igualmente.
Mas foi isso, precisamente, o que mais parece ter empolgado as opiniões europeias (e daí os álibis: armadilha, conjura política). Abstraindo-se do próprio caso, escandalizaram-se com as imagens do indivíduo levado a juízo, algemado, ele, habituado ao maior luxo, um dos mais poderosos do mundo, ali feito um farrapo, abatido poucos dias depois de ter estado em Lisboa a dar ordens aos governantes e políticos desta pequena República ibérica. Então... e o respeitinho?!
Neste sentido, houve muita opinião europeia que lamentou que o sr. D. S. K. não tivesse tido o caso por cá, pois seria bastante mais bem tratado - oh, sim, bastante mais! A empregada do hotel seria detida e castigada por difamar o preponderante personagem, tão amável que até olhara para ela. E o grande homem partiria com desculpas e vénias de toda a gente.
Aqui atingimos o cerne da questão. As figuras públicas, ou mediáticas em geral, incluindo as mais poderosas, terão legítimo direito a estar acima da lei ou, no mínimo, a manterem sob reserva uma fatia qualquer da sua vida privada? Até que ponto uma figura pública conserva ou perde, pelo facto de ser «pública» e na medida em que o seja, o poder para fechar a porta à curiosidade pública e mesmo à coscuvilhice?
Na verdade, as figuras mediáticas aparecem numa contradição viva e encarnam um paradoxo: pretendem ter vidas algo privadas sendo públicas. Porém, para todos os efeitos - os fastos e os nefastos - quanto maior for a dimensão pública que uma pessoa alcance, mais pequena será a liberdade real que lhe resta. Pretender fugir aos efeitos nefastos é ilusório: quanto mais a pessoa tem nome e rosto na praça, mais poder confere aos outros sobre si mesmo.

4 comentários:

Maria Paz disse...

A vida privada das figuras públicas não deveria ter nódoas pois são exemplo para muitos, e todos temos umm pouco a tendência de os imitar. Quando erram devem ser punidos. Também aí servem de exemplo e se não forem parece que tudo é permitido. Veja-se um pequeno país que antigamente se chamava um jardim à beira-mar plantado.

Arsénio Mota disse...

Maria Paz:

Agradeço-lhe o comentário. É perfeitamente concordante com o meu texto, que amplia e valoriza. Muito obrigado por ele.
E já agora, deixe-me acrescentar: não será apenas o sistema judicial do nosso país, e as leis que o regem, que deveriam contemplar (escrutinando) o comportamento geral dos «pilares da sociedade» que somos. Pois não é (e será sempre, até ver) o Povo a fonte legítima do direito e da soberania?!
Logo, do direito e da soberania vai tendo o Povo o que quer... e é tão fácil de contentar.
Cumprimentos.

António Gomes Marques disse...

Meu Querido Amigo
De facto, a lei na América parece ser igual para todos, mas a verdade é que também lá o dinheiro que se tem conta mesmo muito.
Como sabes, segundo a lei americana, cabe agora ao Senhor provar que é inocente, em Portugal caberia ao Ministério Público ou à acusação provar que o acusado é mesmo culpado.
Claro que isto faz a sua diferença, mas o que seria desejável é que a justiça fosse mesmo igual para todos e reconheço que na América (USA) é um pouco menos desigual do que cá. Vamos sempre bater no mesmo: o sistema subjuga a maioria, ainda por cima é esta maioria que paga tudo; se houvesse mesmo democracia, esta maioria poderia mudar o sistema, quero eu acreditar.
Quanto ao caso em apreço, esperemos que o muito dinheiro da mulher não «prove» a sua inocência. Será ele mesmo culpado, como tudo parece indicar que o é?
AGM

arseniomota disse...

António,
Meu caro Amigo:

O «muito dinheiro da mulher», disseste? Referes-te, sem dúvida, à rica mulher do rico homem, o arguido a contas com a justiça, e não à sua vítima. Nada de confusões com a empregada pobre!
Presumo que concordas perfeitamente comigo neste ponto: uma verdadeira justiça é a espinha dorsal de uma verdadeira democracia.
Eu admiro os Estados Unidos, apreciando o que se nos oferece dentro das suas fronteiras; por exemplo, o funcionamento da Justiça. Na verdade, aplicando a lei tanto ao rico como ao pobre, uma Justiça destas ensina-nos o que é, para ter de ser, a democracia. Sem conversa fiada.
Abraço muito cordial.