segunda-feira, 11 de abril de 2011

Lendo o mundo me confundo

Sabem os acompanhantes deste blogue da atenção que temos vindo a dar às mudanças profundas e dramáticas em curso neste nosso tempo. Em jeito de crónica, opinou o cronista sobre questões variadas e tão variadas que, dir-se-ia, também ele se candidatava a ser mais um capaz de ter opinião pronta para despachar qualquer assunto. Evitemos, porém, a crítica fácil quando a pedra de toque consiste neste caso em avaliar se as opiniões aqui defendidas se baseiam a sério na realidade dos factos.
Não será o desconhecimento ou a dúvida mais ou menos momentânea desses mesmos factos que irá invalidar as opiniões expressas. Damos tempo ao tempo: as mudanças ocorrem e os movimentos do corpo social nem sempre reagem de pronto (e é assim que as ideias nas nossas cabeças correm atrás das novas realidades e a custo as alcançam). Habitamos num mundo perigoso e cada vez mais ameaçador, de modo que, talvez por isso mesmo, é agora que mais apetece prolongar as sonecas nos baloiços da rotina (acreditando nos políticos, confiando nos banqueiros) como que embalados em suaves harmonias de esferas celestiais.
Mas, desgraçadamente, tantas são as pancadas que se derramam do alto e tantas são as que se anunciam que o povo estremunha e desperta. Alarme: como pudemos chegar aqui?! Portugal está de novo diante do espelho, a interrogar-se como se não se reconhecesse.
Estamos pois a retomar o fado português que teimamos em viver como um psicodrama coletivo, em círculo vicioso, que se repete dentro do pátrio labirinto. Do 25 de Abril restam agora os cacos, da independência nacional não há sobras e o país de rastos põe-se a postos para receber de fora «quem o governe melhor» do que os seus naturais. A especulação de alta finança é que mais ordena, venha ela completar a destruição da economia nacional operada por criminosas políticas de direita e condenar-nos  a outro período de miséria salazarenta como povo sem colónias agora e sempre colonizado.
É portanto o fado português que regressa ao centro de múltiplas abordagens para motivar mais abordagens, a juntar à estante das antecedentes. Lá estão os textos de Oliveira Martins, Antero de Quental, Eça, Fidelino de Figueiredo, Eduardo Lourenço, Agostinho da Silva... Leonel Cosme, no seu livro Os Portugueses - Portugal a descoberto (Porto: 2007; Profedições, col. Bichos carpinteiros) cita também, nomeadamente, Fernando Pessoa, António José Saraiva, Miguel Torga, Jorge Dias, Jorge de Sena e Vitorino Magalhães Godinho.
Na sua demanda ao «ser português», este escritor e amigo percorre de relance os séculos da história nacional, tentando desenhar o perfil da identidade essencial deste povo. Esboça um «retrato» que nos interroga mais do que nos responde mas deixando no seu percurso, à atenção do leitor, uma boa porção de elementos que sinalizam a sua pessoal visão. Trata-se de uma nova reflexão, de flagrante atualidade, sobre as grandezas e as misérias deste povo que a cada passo tropeça e se desencontra consigo mesmo até pôr de remissa a Democracia.

terça-feira, 5 de abril de 2011

Eis a Nova Ordem Mundial

Esta mão errou ao escrever aqui. Há três anos aspirou por um governo mundial para governar o mundo sem perceber que o mundo  mergulhado em crise já estava servido. E agora, reconhecendo o erro porque consegue ver mais claro, vem corrigir o dito: está a funcionar plenamente uma Nova Ordem Mundial, o verdadeiro rosto do imperialismo.
É o nome de guerra da globalização, desenvolvida com destreza implacável por banksters  do cartel financeiro internacional (os tais das manigâncias impunes) e aplicada contra o euro, agora que o dólar se desfaz em oceanos  diluvianos de papel seco. A ofensiva foi lançada sob a bandeira da luta contra o défice que,  muito convenientemente, surgia nos orçamentos nacionais. Pretexto magnífico: o défice foi cavalo de tróia que entrou pela porta franca dos governos colaboracionistas para se apoderar por dentro, a pouco e pouco, dos Estados.
Serviu para aumentar os impostos, reduzir os encargos sociais, vender ao capital privado património público apetitoso, agravar o desemprego, elevar a inflação, beneficiar os lucros dos bancos, baixar o nível médio de vida, ampliar as desigualdades. Quando o equilíbrio orçamental ia de mal a pior e os Estados entraram em recessão, isto é, quando se fazia notória a necessidade de se mudar de política (da direita), a recessão levou os governos a descobrir que... dinheiro é dívida. Pedir empréstimos, a juros cada vez mais onerosos, transformou-se num jogo aberrante e as dívidas, monstruosas, foram declaradas incobráveis. Mas os banqueiros engordavam e queriam mais e mais.
O consumismo desatado serviu às classes médias para comprar casas, carros, viagens a crédito e agora a austeridade deixa tudo a nu: as famílias, as empresas, os bancos, os  municípios e os Estados encontram-se atolados em dívidas que não veem como podem pagar. Mas agora percebe-se o logro: é a Nova Ordem Mundial a comandar com  o seu  brutal «casino» financeiro. Nem a Islândia, aplicando políticas corretas após a bancarrota (e por isso banida dos media nacionais e internacionais), conseguirá talvez escapar-lhes.
As riquezas dos países ocidentais estão a ser desviadas em caudal para mãos sem rosto escondidas em parte incerta, através da simples troca dos nossos bens e privilégios  autênticos por papéis, rimas e mais rimas de títulos afinal sem valor. Quem duvida, arranje 14 minutos e veja este video no Youtube. Alguém torna a avisar-nos: povos e Estados em sucessão (Irlanda, Grécia, Portugal, Espanha...) enfrentam montanhas de dívidas em crescimento, a pagar pelas presentes e próximas gerações.
É absolutamente crucial perceber, neste tempo de combates mortais entre grandes ditaduras, que  temos de conhecer sem mais demora como funciona o sistema bancário global, ainda que isso possa motivar uma revolução (glosa de frase célebre atribuída a Henry Ford). A aliança objetiva da zona euro com o dólar não parece garantir à moeda única europeia o melhor futuro nesta conjuntura em que se torna vital afiançar um sistema monetário seguro e credível. De contrário, como diz o outro, o nosso dinheiro, na carteira ou no banco, será uma ilusão temporária... [Ilustração: réplica de "O grito", de Munch; quadro executado com vegetais (batata doce), de autor desconhecido.]

quarta-feira, 30 de março de 2011

O lugar dos idosos

Não basta discutir a sinonímia para reclamar que os idosos podem não ser «velhos». É preciso ir mais longe e notar que os costumes no nosso tempo não correm de feição para os seniores. Estorvam como trastes fora de uso sendo todavia reclamados para o lugar onde realmente uma necessidade grita por eles.
E eles acodem. São outra vez pais para os netos (e agora, felizmente, com outra disposição e maior disponibilidade), são caixa multibanco doméstica para a quantia que falta, são o biscateiro pronto para a bricolagem urgente ou o parecer oportuno. Então, sim, a família festeja por os seus idosos estarem ali ainda para as curvas e não arrumados no sótão.
Festejam eles próprios por se sentirem úteis, com lugar aberto. Mas quem cuida de lhes perguntar como se sentem sob o peso dos anos vividos, os desgastes, as queixas do corpo? Quem se dispõe a conter as pressas para conversar um pouco com os  idosos que vê cercados de solidão, ensimesmados e melancólicos, sentados pelos cantos, ansiosos de contacto humano para ficarem de repente animados, comunicativos, dir-se-ia quase rejuvenescidos?
Escasseiam os ouvidos abertos e multiplicam-se os «velhos» porque, de facto, as populações europeias em geral estão a envelhecer e a portuguesa não é exceção. Nem sobra teto onde caiba tanta gente reformada, aposentada, pensionista ou sem pensão nenhuma, pois a procura excede a oferta. Entretanto reina, com a força de um dogma, o culto das imagens de juventude, culto tão forte que parece fazer esquecer o infalível envelhecimento a quem há-de viver para tanto.
Diluiu-se a consideração tradicional em que eram tidos os idosos no seio das famílias e das comunidades. Nos países ocidentais, onde mais se implantou o consumismo e o culto da juventude, cresceu também, com a população idosa, uma tendência para encarar os «velhos» como refugos descartáveis do sistema de produção em crescente desumanização. Mas outra é a consideração e mesmo o respeito que envolve essa população nos países orientais.
Em algumas dessas sociedades, os idosos mantém uma autoridade e até um prestígio entre nós já surpreendente. São povos, no entanto, no limiar do consumismo e pouco interessados em erguer o ícone da juventude ao máximo esplendor, pois nem pressa têm de empurrar meninos e meninas para a idade adulta.  Podem afirmar, com mais propriedade do que nós, que quando um idoso morre, é uma biblioteca inteira que desaparece.
Realmente, é durante uma longa vida que se acumula e decanta a experiência do mundo. Saber ouvir as vozes da experiência vivida ajuda a melhorar o conhecimento do passado para melhor compreender o presente e perspetivar o futuro. Vale sobretudo para ativar as memórias.
Justa e certeira é, aqui e agora mais que nunca, a tese de Gandhi: via na forma como os animais eram tratados a marca de uma degradação da humanidade. O culto do novo em contínua (meteórica) renovação, na sociedade do desperdício, fica assim com a culpa de uma atroz desvalorização do ser humano. Será esta a dor que empana o olhar de tantos idosos?

quarta-feira, 23 de março de 2011

A ideologia do futebol

O futebol traz inerente uma ideologia que é particularmente visível embora poucos a notem. É a ideologia do capitalismo. Lembra-nos que a popularidade do futebol acompanhou o advento da publicidade, do marketing, dos media.
Tudo isso sinalizou a implantação crescente de uma mentalidade capitalista e do sistema socioeconómico afim em acelerado desenvolvimento após, digamos, 1950. No século do petróleo, entrámos no consumismo da era imperialista.
As regras do jogo no campo de futebol são, a nu, as do mercado clássico. Importa perceber, pois, a matriz ideológica que define esse jogo: entusiasma quem alinha na vontade de concorrer, isto é, de competir, partilhando essa vontade com os jogadores da equipa que o espectador apoia na exibição; exalta o herói individual ainda que o integre na equipa quando se torna necessário o esforço conjunto ao modo da matilha que se organiza para a caçada.
No campo de futebol triunfa, tal como no mercado, o protagonista mais forte, sendo mais forte o que dispõe de maiores recursos financeiros para comprar no “mercado” internacional os jogadores profissionais com palmarés recomendáveis. A competição alimenta o espectáculo e o espectáculo faz-se com cada golo introduzido na baliza. Derrotar o adversário concorrente, esmagá-lo e ganhar o jogo, ainda que à custa de investir gigantescas fortunas na equipa, torna-se o objectivo supremo.
O jogo serve para apurar um vencedor, o mais poderoso, e o aplaudir. Transforma-o num “escolhido”, bafejado com um talento raro, valiosíssimo. Se a vitória lhe sorriu, não proveio da sorte ou dos azares do jogo (porque a bola é redonda, o pontapé não aplica uma ciência exacta e o vento sopra em variadas direcções); assinala-o com uma estrela especial tal como os donos de grandes fortunas se sentem miraculados e tão próximos de Deus que o instalam em capela privativa na própria casa.
Mas a façanha do mais forte passa a valer no plano simbólico - o campeonato, a taça. O preço real de cada golo enfiado na baliza de cada vitória atinge níveis tão loucos que deixa os clubes arruinados. Depois de transformar o jogo (que é e deve ser actividade lúdica) em espectáculo consumível, os golos limitam-se a conceder vitória, fugaz porque logo tem que ser continuada-confirmada por outra.
Estimulando a competição pela competição, o jogo justifica a ambição individual e estabelece a desigualdade e a injustiça, lembrando que o capitalismo não é de essência democrática. Como no jogo do Monopólio, também no futebol se infiltra uma ideologia subliminar que interioriza a respectiva ética. As suas regras podem ser subvertidas por árbitros corruptíveis.
Assim o sistema capitalista e o futebol dançam tão bem o tango avançando abraçados pelo mundo que fazem seu. [Ilustração: pintura de Keith Malett.]

quarta-feira, 9 de março de 2011

Sempre em Galiza

Os portugueses denotam uma certa relutância, ou indiferença, perante as hipóteses de relacionamento solidário, a sério, com os vizinhos da Galiza. É uma sensação que aparece no terreno, a um certo nível das relações intelectuais, à medida que descemos do Alto Minho para sul, especialmente a partir de Coimbra. Ao transpor as águas do Tejo, dilui-se nas brisas.
Talvez haja uma explicação para isso, uma explicação advinda do complexo de circunstâncias acumuladas pela história. Observando o documento cartográfico de 1066 (aqui ao lado), que indica a verde a velha Gallecia do período romano, pode-se ter uma primeira visão do assunto. Abrangia uma franja peninsular desde a Corunha, no topo norte, e terminava além de Leiria, embora outras fontes, porventura mais consistentes, se detenham na linha do Mondego.
Os amigos galegos gostam de nos lembrar que a Gallecia foi por muitos séculos o nosso território comum com capital na augusta Bracara. Eu, quem sabe se por força das minhas origens, acho que é fácil e bom gostar do povo galego, posto que tenha levado o pé ligeiro a Tui já com 18 anos e andasse nos 40 quando entrei a valer em contacto com a sua cultura (lembro-o aqui). Manifesto-lhes, a esse povo e sua cultura, uma solidariedade desvaliosa mas sincera, apoiando, se apoio me pedem, e lamentando atitudes de quem lhes responde com escusas e polidas reticências.
Comecei a sentir esta resistência há uns bons quarenta anos, quando a Galiza lutava por autonomizar (leia-se: proteger) a sua fala materna da contaminação pelo Castelhano. Uma porção de intelectuais portugueses ou desconhecia o berço de origem do Português ou, pura e simplesmente, virava as costas ao assunto. A nossa indiferença declarou-se ao nível oficial e diplomático aquando da organização da Comunidade de Países de Língua Portuguesa, composta por oito Estados (Timor-Leste incluído)... e sem a Galiza.
Gostaria de pensar, sem saber o que pensar, que continuamos ainda virados para sul, em luta pela Reconquista, em assédio a Lisboa e projetados até Faro. Demoro-me, porém, a contemplar o povo irmão que temos a norte do rio Minho, hoje com uma pitada de nostalgia porque encontro num blogue de lisboetas motivo para evocação e saudade. Benedicto Garcia aparece ali a considerar que José Afonso e ele cantavam a mesma canção (de protesto) e que a Galiza, para Zeca, foi «pátria espiritual».
Não se lembrou aquele amigo galego que veio cantar ao Porto, no início dos anos '70, por convite meu. Tinha então creio que um único disco com quatro cantigas, editado em Barcelona em 1968, e pertencia ao grupo Voces Ceibes (Vozes Livres). Foi o comum amigo Manuel Maria que nos pôs em contacto (estava eu a publicar-lhe a primeira obra de poesia junto com outra, de outro poeta galego, Celso Emilio Ferreiro) e os caminhos ficaram abertos para novos  encontros.
Tantas lembranças a vir (e serão só minhas?!): Benedicto deu cá entrevistas na rádio, as suas cantigas entraram no ar, actuou ao vivo, estabeleceu contactos entre nós. Um deles foi com Manuel Freire, então com a «Pedra filosofal» em evidência. Logo, em 1972, visitou Zeca em Setúbal e começou a amizade luso-galega documentada com nome de rua em Santiago de Compostela, onde nasceu em 1947 o próprio Benedicto.

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

O Outono em Pequim

Uma vontade especial parece reger superiormente a ordem das nossas leituras. Altera-as caprichosamente: há livros que tencionamos ler borbulhando de sincero interesse, o tempo passa e... nada. Podem ser obras clássicas de bastante renome ou de outro género, temo-las por vezes espalhadas pelas estantes, sabendo já que são em demasia, à espera da nossa mão, mas algo nos desvia sempre levando-nos, à última hora, para outro lado.
Leituras assim adiadas amontoam-se no fio dos anos, de forma tão involuntária quão voluntária, criando em nós um resíduo de culpa sem desculpa. Como se ficássemos em falta perante o rol extenso de promessas íntimas ao dispersar-nos por leituras avulsas, tantas vezes despiciendas, sem verdadeiro critério seletivo. E, também, como é grande, e grata, a satisfação que nos invade ao agarrarmos finalmente o volume que, entre outros, esperou por nós!
Eis o que senti tomando da estante, passados vinte anos, O Outono em Pequim (Publ. Dom Quixote, 1989), de Boris Vian. Ia ler, finalmente, este romance do autor de Irei Cuspir nos Vossos Túmulos ou de A Espuma dos Dias para refrescar o gosto pela verve tão francesa do admirável boémio (1920-1959) falecido com 39 anos mas com tempo para ter sido engenheiro e inventor, músico e cantautor, cenarista e actor, poeta, romancista e tradutor, cronista... Consta que Boris Vian aprontou esta obra em três meses, em 1946.
Confirmou as minhas melhores previsões. As mirabolâncias de uma imaginação prodigiosa estão ali para desafiar não só a atenção do leitor, também a capacidade da sua percepção. O absurdo salta da narrativa (que nada tem de outonal ou pequinense), mas isso é apenas um recurso entre outros do humor próprio do autor: vai do simples gracejo ao sarcasmo ou à sátira risonha.
Mas nada impediu Boris Vian de estruturar a obra como um bom engenheiro. Designa com letras de A a D o «miolo» do romance e a seguir encontramos três «Andamentos» compostos por uns quantos capítulos, abrindo quase sempre com epígrafes cheias de intenção, e, no fim, uma espécie de epílogo deveras sentencioso e moral... Basta a primeira página para o leitor se convencer de que, ali, é o autor quem mais se diverte.
Iconoclasta e franco-atirador, Boris Vian dispara em variadas direções. Ridiculariza laureados académicos parisienses que hoje ninguém lembra e joga com arqueólogos, administradores de companhia, burocratas, pederastas, padre, pedófilo, etc. O registo dominante é porém o do non sense, embora o padre confirme (p 109-110) que «a espiritualidade não costuma sair em jacto contínuo, sobretudo se, entretanto, se pode esticar o pernil».
Da tradução, trabalhosa, se incumbiu Luísa Neto Jorge, que não limpou o texto de umas  poucas falhas. A mais saliente, ao que me parece, ocorre numa referência (p 147) «ao símbolo de S. Simão estilista». Erro: o «estilista» devia ser estilita, o da lendária coluna, lapso tão comum que já arrelia.
Redobra o prazer da leitura deste livro lembrar que foi escrito no ano em que se iniciou a reconstrução de França no pós-guerra. Estabelece-se com o leitor, tacitamente, um paralelo entre aquela e esta nossa atualidade, devastada por uma outra guerra sem tiros nem explosões, sim, mas com colossais estragos. Vida neste nosso mundo, só a brincar!

terça-feira, 7 de outubro de 2008

Língua: de mal a pior

Se a língua, esta nossa língua materna, tem um tronco como os pinheiros, então esse tronco, formado pelo seu léxico e a sua norma, anda a ser atacado por uma praga de nemátodos. Ameaça corroer-lhe o tronco e abatê-la mas, ao que se vê, isso que importa? Uns caturrões típicos são os únicos que parecem ralar-se, vendo na língua em decadência a marca maior que resta do génio português.
Eu sou um deles, aqui o confesso à puridade. Não me conformo com as tropelias que oiço na comunicação social: a invasão dos anglicismos depois da gíria bebida das telenovelas brasileiras, os pontapés na gramática. Assim, a língua vai de mal a pior... em Portugal. Anda na boca do povo que, desde Quinhentos soube transformá-la, pela mão de Camões e logo por uma plêiade de escritores, numa verdadeira língua de cultura. Mas não é só o povo que agride a norma (e tem desculpa, pode não saber mais), também os intelectuais.
Recentemente, um artigo de opinião inserido no «Diário Económico» (30 de Setº, pág. 53), de autoria de Manuel Gonçalves da Silva, professor catedrático da Faculdade de Ciências e Tecnologia da UNL, chamou à liça o tema «Linguagem e rigor científico». Sublinhando que «palavras e gramática são essenciais à concepção e à transmissão do pensamento», observou: «A escrita atabalhoada, sem respeitar o significado das palavras, impede o desenvolvimento e a divulgação de conhecimentos científicos. (…) As Universidades recrutam docentes sem provas pedagógicas e as togas deixam nua muita ignorância que degrada a Língua e impõe um medíocre ensino às ciências e engenharia.»
Gonçalves da Silva designou quem «escreve teses em inglês para júris, escolas e alunos» caindo em deslizes anedóticos. Consta, por sinal, que há por aí mestre ou doutorado em Letras capaz de errar, não na língua inglesa, sim na sua própria língua materna. De licenciados nem se fala porque, se tal é coisa verídica, é obra!
Nesta moldura, avultou o que o ministro da Cultura, Pinto Ribeiro, anunciou em Paris, nos Estados Gerais do Multilinguísmo: que ia «refundar» o Instituto Camões e reformular o ensino da língua portuguesa no estrangeiro, pois, afirmou o ministro, muitos alunos «não querem o Português literário». Foi claro: «Está previsto que se refunde o Instituto Camões. O que significa prestar uma especial atenção a todos estes curriculos do ensino do Português, que vão ter que ter em consideração que há muita gente que não quer Português literário.» (Ver aqui)
Contra este empobrecimento da nossa língua literária se ergueu Osvaldo Manuel Silvestre, professor da Faculdade de Letras coimbrã. Comentou: «como entender, se não sob suspeita, uma afirmação como a de que ‘há muita gente que não quer Português literário’? Fez o ministro sondagens e inquéritos para o saber de ciência tão certa? Sabe, em função deles, que as pessoas preferem o ‘português mediático’ ou o ‘português futebolístico’ ou o ‘português de Margarida Rebelo Pinto’ ao ‘português literário’? Ou será que se refere à sociologia selvagem produzida por coisas como ‘Morangos com Açúcar’?» (Aqui)