quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

O Outono em Pequim

Uma vontade especial parece reger superiormente a ordem das nossas leituras. Altera-as caprichosamente: há livros que tencionamos ler borbulhando de sincero interesse, o tempo passa e... nada. Podem ser obras clássicas de bastante renome ou de outro género, temo-las por vezes espalhadas pelas estantes, sabendo já que são em demasia, à espera da nossa mão, mas algo nos desvia sempre levando-nos, à última hora, para outro lado.
Leituras assim adiadas amontoam-se no fio dos anos, de forma tão involuntária quão voluntária, criando em nós um resíduo de culpa sem desculpa. Como se ficássemos em falta perante o rol extenso de promessas íntimas ao dispersar-nos por leituras avulsas, tantas vezes despiciendas, sem verdadeiro critério seletivo. E, também, como é grande, e grata, a satisfação que nos invade ao agarrarmos finalmente o volume que, entre outros, esperou por nós!
Eis o que senti tomando da estante, passados vinte anos, O Outono em Pequim (Publ. Dom Quixote, 1989), de Boris Vian. Ia ler, finalmente, este romance do autor de Irei Cuspir nos Vossos Túmulos ou de A Espuma dos Dias para refrescar o gosto pela verve tão francesa do admirável boémio (1920-1959) falecido com 39 anos mas com tempo para ter sido engenheiro e inventor, músico e cantautor, cenarista e actor, poeta, romancista e tradutor, cronista... Consta que Boris Vian aprontou esta obra em três meses, em 1946.
Confirmou as minhas melhores previsões. As mirabolâncias de uma imaginação prodigiosa estão ali para desafiar não só a atenção do leitor, também a capacidade da sua percepção. O absurdo salta da narrativa (que nada tem de outonal ou pequinense), mas isso é apenas um recurso entre outros do humor próprio do autor: vai do simples gracejo ao sarcasmo ou à sátira risonha.
Mas nada impediu Boris Vian de estruturar a obra como um bom engenheiro. Designa com letras de A a D o «miolo» do romance e a seguir encontramos três «Andamentos» compostos por uns quantos capítulos, abrindo quase sempre com epígrafes cheias de intenção, e, no fim, uma espécie de epílogo deveras sentencioso e moral... Basta a primeira página para o leitor se convencer de que, ali, é o autor quem mais se diverte.
Iconoclasta e franco-atirador, Boris Vian dispara em variadas direções. Ridiculariza laureados académicos parisienses que hoje ninguém lembra e joga com arqueólogos, administradores de companhia, burocratas, pederastas, padre, pedófilo, etc. O registo dominante é porém o do non sense, embora o padre confirme (p 109-110) que «a espiritualidade não costuma sair em jacto contínuo, sobretudo se, entretanto, se pode esticar o pernil».
Da tradução, trabalhosa, se incumbiu Luísa Neto Jorge, que não limpou o texto de umas  poucas falhas. A mais saliente, ao que me parece, ocorre numa referência (p 147) «ao símbolo de S. Simão estilista». Erro: o «estilista» devia ser estilita, o da lendária coluna, lapso tão comum que já arrelia.
Redobra o prazer da leitura deste livro lembrar que foi escrito no ano em que se iniciou a reconstrução de França no pós-guerra. Estabelece-se com o leitor, tacitamente, um paralelo entre aquela e esta nossa atualidade, devastada por uma outra guerra sem tiros nem explosões, sim, mas com colossais estragos. Vida neste nosso mundo, só a brincar!

5 comentários:

Anónimo disse...

Caro Arsénio:
Como pegas bem no tema! Obrigado.
Mais um livro a entrar na minha fila de espera. Por exemplo, "A casa grande de Romarigães" e "A confissão de Lúcio" estiveram-no perto de 40 anos!
E as traduções, mesmo pelo(a)s melhores, sempre tão suscetíveis!
Já agora, não fora de 1989 a edição, teriamos "Outono em Beijing"!
Parabéns por seguires o novo acordo ortográfico.
Feliz 7ª semana!
Rui

Anónimo disse...

Caro Amigo:

Obrigado por partilhar connosco mais uma grande obra literária.

Na última Feira do Livro do Porto (e já lá vão 6 meses), o amigo lia Boris Vian, recordo que trazia um qualquer livro deste autor debaixo da cova do braço. Não me engano, pois não?

Tão bom quando somos companhia de um autor durante tanto tempo. Talvez tenhamos sido levados ao prazer da sua escrita pela mesma força com que ele, quando escreveu, esperava vir a atingir-nos.
Quando isto acontece... que dizer?

Um abraço,
António Canteiro

Arsénio Mota disse...

Caro Rui:

És um grande leitor, compreendes bem estes caprichos da nossa sorte. A ordem das leituras navega na «espuma dos dias». E os tradutores, como no caso da escritora Luísa Neto Jorge, podem ter traduzido na perfeição e o erro ter sido introduzido depois (caso do «estilita», possível). Lembro: também eu tive que corrigir uma senhora licenciada, de uma editora, que me queria emendar a palavra para «estilista», ignorando completamente o significado do termo no original e na minha tradução!
Abismei.
Atiro-te um abraço cá do fundo.

Arsénio Mota disse...

Caro António Canteiro:

É perfeitamente possível ter-me visto na feira com um livro debaixo do braço. Mas não era este ou outro livro de Boris Vian. Como digo, ele esperava por mim na estante há muitos anos, desde a sua publicação. Seria outro, portanto.
Agora, o que seria óptimo era termo-lo aqui a si, na próxima feira, para autografar uma obra acabadinha de sair. Poderá ser?
E então, sim, falaremos dos encontros entre os textos e os seus leitores... mesmo os leitores tardios...
Saudações cordiais.

Luís Henriques disse...

Sr. Arsénio Mota, agradecidos pela sua visita e os seus comentários no Armarium Libri. É sempre bem-vindo na nossa casa.