segunda-feira, 20 de junho de 2011

A Literatura que temos

Descer a avenida até à Praça da Liberdade pelo interior dos stands da Feira do Livro, olhando à esquerda e à direita, dava-nos, quero crer, uma visão panorâmica do que se vai publicando e lendo em Portugal, atualmente. Mas falhou-me a coragem para tanto. Fiquei, de lado, a ver as pessoas a entrar e a sair do certame enquanto, na sala escura do cérebro, punha a correr um filme mudo.
Terminada há dias, a Feira do Livro decalcou as anteriores sem desvio de monta (apenas uma relativa novidade sobressaiu: os livros digitais, os designados ebooks). Mesmo sem andar por lá, um amigo dos livros pode perceber as estratégias dos três ou quatro grandes grupos editoriais com importância suficiente para preencherem, quase «colonizarem», o espaço. E facilmente conclui que os leitores em geral vão consumindo sem resmungo o que os grandes editores lhes dão a ler.
Ora isto repõe em cima da mesa o quadro cultural apresentado pelas mutações da realidade sociológica do país, aí onde se entrecruzam questões de incontroversa relevância. Perguntaremos então como funciona o ensino da Literatura em todos os níveis da escolaridade, do básico ao superior, para estimar de relance os seus resultados. Apurando a questão, chegaremos por fim a questionar o processo da formação do gosto literário; o que é, para o público letrado, que lê livros, a Literatura modelar, paradigmática.
De facto, sendo hábito desejável a leitura, ainda mais desejável é que se apoie e decante, sem perda de vigor crítico, no gosto formado pelo leitor capaz de admirar as obras primas literárias de autores portugueses e de todo o mundo. Este requisito, no entanto, torna-se incontornável nos casos em que o leitor também se encarrega de ensinar outros a ler em qualquer escola depois de ter obtido a necessária preparação. O gosto literário predominante aparecerá naturalmente em resultado da soma final das diversas componentes envolvidas.
O tema é aqui tocado de fugida para notar a escassa atenção que vem tendo em Portugal, e isso é lamentável tanto mais que no Brasil não falta quem dele se ocupe. Registo apenas dois ensaios de Carlos Ceia, professor da FCSH da UNL e formador de professores de Português e Inglês: A Literatura Ensina-se? Estudos de teoria literária, Lisboa, 1999, 2ª ed., 2004, e O Que é Ser Professor de Literatura, Lisboa, 2002 (edições Colibri). Basta-me pegar aqui no primeiro título para iluminar a questão quanto basta.
A reflexão teórico-prática de Carlos Ceia não tem tradição entre nós. Lembra o autor, a abrir, que a teoria da literatura surge por cá no início dos anos '50, para logo a seguir afirmar, talhantemente: «O ensino oficial da literatura em Portugal não tem presente nem futuro, enquanto depender de programadores de vistas limitadas para o papel que cabe à teoria na aquisição de uma competência crítica na abordagem dos textos literários.» 
O mesmo autor percorre em A Literatura Ensina-se? um temário conexo (relações ideologia e textualidade, intenções do autor vs soberania do leitor, a crítica profissional, funções da didática, ou pedagogia, da literatura com a formação do gosto, etc.), visando a constituição do «cânone literário português» após Fernando Pessoa para servir a comunidade escolar nacional. Talvez tudo isto nos ajude a entender a Literatura que temos...
Nota: A Carlos Ceia se deve um «Dicionário de Termos Literários», por vários autores, disponível em
http://www.fcsh.unl.pt/edtl

2 comentários:

Maria Paz disse...

Mais uma vez completamente de acordo. Publicam o que querem que se leia. Tenho uma grande ou pequena biblioteca de livros que li. Penso que sejam, na maioria boas obras. No meu tempo de liceu obrigavam-nos a ler uma quantidade de livros de autores portugueses, a escolha deles. Fugi um pouco a essa leitura socorrendo-me dos resumos que existiam na altura para me safar nos testes. Ganhei até uma certa aversão aos autores portugueses. Parece que escolhiam as obras mais aborrecidas e extensas para lermos. Mas provavelmente essa análise foi benéfica e teria a sua razão de ser.
Posteriormente descobri outras obras, dos mesmos autores, que me modificaram a opinião. Presentemente até os jornais me aborrecem. A maioria das pessoas escreve mal, os textos são mal editados com gralhas. Não há pachorra! Limito-me a ler algumas notícias na net e e-books.
Obrigada pelo comentário, que me emocionou.

A. M. disse...

A sua concordância sensibiliza-me. Eu vivi sempre agarrado aos livros e às leituras, quase por meio delas respirando mas desde há uns tempos, viro-me de preferência para livros editados há uns trinta anos, ou mais antigos, de autores meus contemporâneos ou clássicos cá do rectângulo ou de fora. Neles encontro a substância que rareia entre tanto verbo de encher mas de que preciso vitalmente.