sábado, 16 de junho de 2012

O jogo da vida

Venho de um outrora em que qualquer passatempo servia apenas para passar o tempo em ociosidade. Por outras palavras, reconheço e assumo os anos já longos que levo de vida, sentindo agora que esta idade não tem só pungências, também algumas competências. Pelo menos terá uma, a de poder perceber a extensão que foram ganhando os chamados tempos livres e as «ocupações» que os foram preenchendo e absorvendo.
Antigamente havia poucas pausas para descanso, logo, poucas distrações. A disciplina do trabalho era exigente: viver do esforço honrado valia para o trabalhador como um brasão, a ociosidade era apontada como um desperdício, quase um vício. Nesta ordem de ideias, o jogo, máxime qualquer jogo de azar, que leva dinheiro e não feijões, desaparecia das vistas condenado por uma densa nuvem de sentenças morais.
Mas foram surgindo as lotarias, os casinos, os totobolas, os totolotos, mil sorteios sem sorte... Os maridos deixaram de ganhar o suficiente para sustentar suas famílias, as esposas tiveram que ajudar aceitando salários mais baixos, e ambos perdiam imenso tempo nos transportes. Sua majestade o futebol impôs-se como espetáculo de massas, alcançou mesmo o estatuto de «indústria», e a televisão das telenovelas, cantigas e concursos completou o quadro das distrações obrigatórias.
Habituámo-nos a dispor dos tempos livres até criarmos deles uma forte dependência, mas, contraditoriamente, habituámo-nos também a lamentar que, andando sempre a correr, não temos tempo para nada. Nem conseguimos ver o lugar central em que pusemos os jogos nas nossas vidas. O jogo da bola é um deles e tão absorvente quanto se sabe.
Aliás, absorvente e alienador. Instala a competição entre pares, a ambição da vitória a qualquer preço, e vulgariza a degradação dos vencidos. O patriotismo, o brio e a própria honra nacional dependem do pontapé da sorte que faz entrar uma bola na baliza.
Mas, assim, para onde são varridos, pelo mesmo golpe, o sentimento patriótico e o brio nacional dos povos arrebanhados e adormecidos em camas de resignação onde sonham alto? Acreditarão que é possível ter direitos e liberdades cívicas sem se incomodarem quanto for preciso na sua defesa? Ou terão de perceber um dia que a loucura é tão contagiosa quanto qualquer medo?
O jogo preenche a vida (individual, coletiva) que por outro lado se esvazia de sentido. Mas poderá a vida resumir-se ao jogo? O que será jogar a vida? 

2 comentários:

Maria Paz disse...

Também sou do tempo em que a ociosidade era tão mal vista... quanto ao futebol só penso no ordenado daqueles homens... profissão de desgaste rápido, dizem...

A. M. disse...

Maria Paz,
cara amiga:

Eles ganham a vida a jogar e no jogo a perdem depressa. Quem fica a ganhar? Quem fica a perder?
Olhemos para Maria Paz. Mulher que passa os seus dias em contacto com a natureza, fazendo crescer um retalho de terra, de «camera» pronta na mão a deslumbrar-se com uma borboleta, uma simples flor em botão... Grande exemplo de vida autêntica a sua!