Os nossos tempos não vão favoráveis à afirmação vigorosa do pensamento. Criações mentais desejavelmente inovadoras parecem recostar-se numa passividade acomodada ou numa conformação indiferente ao que de renovador mais importaria. O panorama como que adormece numa espécie de estagnação pantanosa ou mesmo numa real decadência.
Onde pode o observador encontrar hoje um sinal de rasgada afirmação? Percorre os diversos sectores da criatividade intelectual e o que se lhe depara? A mentalidade tecnocrática, dedicada ao serviço das empresas, sufocou a cultura humanista obliterando a relação de cada pessoa com a espécie integrada na natureza, nosso berço.
Ia prosseguir, desenrolando o fio do meu discurso, mas, neste ponto, parei a escrita. Caiu-me o olhar numa frase em crónica de Vasco Pulido Valente que parecia exprimir a ideia que começava a enunciar. A frase: “A autoridade da ‘inteligência’ desapareceu.”
Mas, então, de onde emana a autoridade que continua a exercer-se nos variados planos da vida social se a autoridade da “inteligência” desapareceu? Se o regime republicano e o sistema democrático continuam vigentes, incluído o sistema da justiça, que processo terá conseguido descartar a preclara “inteligência”? Substituiu-a acaso a mediocracia eleitoral?
E que espécie de autoridade será essa, declaradamente não iluminada pela
“inteligência”? Decorrerá da mediocracia da mediocracia eleitoral e poderá ser
ainda legitimável como “civilização”? Ou a monstruosidade contida na síntese de
VPV, ao causar-nos um estremeção de profundo horror, também nos adverte do
sentido de uma geral deriva política em crescente afirmação da direita (da austeridade programada, do empobrecimento do povo)?
Vejamos. Do que se trata não é, afinal, da abolição da “inteligência” da
autoridade (do poder governante, da justiça). É da imposição liminar do seu
inverso, ou antónimo, pois a inteligência (democrática) que nos tem governado
vai sendo absorvida por uma diversa “inteligência” estratégica que se declara presente e
omnipotente.
Por este caminho, quanto tempo faltará para se repetir o memorável caso dos anos ’30 do século passado? Decorria a sangrenta guerra civil espanhola, provocada pelos franquistas contra o governo republicano eleito, patamar preparatório da Segunda Grande Guerra. Quem falasse de “cultura” punha franquistas a puxar da pistola… [Imagem: “Zé Povinho com sua albarda”, pintura de Rafael Bordalo Pinheiro.]
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