Da primeira vez que o olhar lhe caiu no rosto estampado a preto e branco em toda a página e leu a frase, sorriu, da segunda vez achou piada ao homem, mas à terceira ficou a pensar, o caso não era para menos, uma grande editora do país, que publicava o retrato em catálogo de saldos, inseria na imagem a frase estupenda: “Contar histórias é um dom concedido por Deus”, portanto, ele, romancista, contador de histórias, estava impregnado por divino dom, era quase um taumaturgo a fabular como um xamã ancestral nas sociedades tecnocráticas actuais, lembrava aqueles fidalgos antigos que juntavam ao palacete uma devota capelinha de cruz ao alto na frontaria a indicar que Deus estava com o senhor da casa e que com o carisma que Deus lhe concedia chegara a rico, decerto Deus, com os pobres, punha-se a olhar para o lado, mas este contador de histórias não exibia cara reconhecível de fidalgo, tinha uma pele tisnada, fina e muito enrugada, vincos na testa verticais e horizontais, um tecido de rugas e, nas órbitas, um olhar fixo e firme, inclemente, capaz de perseguir algum fugitivo por todos os cantos da casa, não, uma cara destas não pertencia a americano que nos aparece depois de exercer uma quantidade de profissões extraordinárias e de atravessar sozinho um deserto poeirento montado no seu cavalo tristonho levando na bandoleira o rifle e o revólver no coldre, será mais certamente um inglês conservador até à medula, apoiante ferrenho da monarquia britânica, porque, se assim não fosse, como poderia o homem pretender possuir um dom prodigioso para contar histórias quando, no catálogo dos saldos, a editora anuncia mais de duzentos livros com preços reduzidos para metade, ali havia ficções para todos os gostos, ficções traduzidas para o nosso idioma ou de nossa autoria e quando já tanta gente quer ganhar a vida singelamente a contar histórias, até os autores de cantigas se pretendem escritores de canções e contadores de histórias, e, vejamos, não estavam todas as histórias possíveis do mundo já esgotadas até ao sabugo e o mercado a abarrotar de histórias gastas sem novas histórias para contar?, ou seria aquele mirífico “dom concedido por Deus” mera esperteza do escritor sabido, atentíssimo às volições das preferências e dos gostos do mercado, que o elevava à categoria de autor de best-sellers internacional, um romancista famoso, traduzido em todo o mundo, portanto lido em variadíssimos idiomas e países, de Tóquio a Londres, de Paris a Nova Iorque, de Moscovo a Sidney, de Santiago do Chile a Oslo, da Manchúria à Conchinchina?, talento altamente rendoso e altamente apreciado pelas editoras de livros de todos os países que se esforçam ao serviço dos leitores com obras cada vez menos sortidas, isto é, menos variadas, procurando decerto realizar um sonho, pôr todo o mundo globalizado a ler um mesmo livro, ou um reduzido número de livros decantados pelas dinâmicas do mercado, quer dizer, expurgados de perturbadoras dissemelhanças, da autoria feliz de uns poucos fabricantes de best-sellers mundiais.
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