quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

Derivações da deriva

O dicionário dissipa quaisquer dúvidas: deriva é isto de ir à sorte, ao sabor das ondas; derivar é a acção que desvia uma coisa do curso natural, é afastar a coisa do seu rumo, apartar. Habituámo-nos neste mundo em convulsão a constantes derivas, dramáticas mudanças, alterações radicais. Acumulam-se tão vertiginosamente que o esforço maior é o da adaptação à mudança e não à compreensão do que mudou, de modo que as derivas quedam nebulosas, inexplicadas.

Todavia, algumas derivas resistem à mudança, parecem imóveis ou inamovíveis. Exemplo, a permanência da NATO (24 anos após a ex-União Soviética ter dissolvido o “seu” Pacto de Varsóvia acreditando decerto no fim da guerra fria), que interveio nos Balcãs em 1992-1995 deixando a Jugoslávia fragmentada, em cacos, entre os quais Kosovo avulta como eloquente símbolo. A NATO, organização militar liderada pelos Estados Unidos, confunde-se por vezes com a nação líder na visão de comentadores que apontam na sociedade americana a feição violenta e no exterior o seu comportamento belicoso, militarista, de potência agressiva, envolvida em frequentes guerras.
As intervenções no Vietnam e, mais remota, na Coreia, ambas terríveis, ficam quase sem memória perante a invasão do Iraque, em 2003, que o governo de Bush justificou com recurso a mentira e falsa propaganda. Nasceu então o alegado “terrorismo” (quer dizer, a agressão do “outro lado”, não a nossa), transformado em serviçal bandeira com o colapso das torres gémeas em Nova Iorque mais qualquer coisa no Pentágono. O que a retórica da anunciada “Primavera árabe” prometia viu-se logo: a Tunísia entrou em ebulição imparável, a Líbia idem, Kadafi acabou algures, misteriosamente executado, como Bin Laden ou Sadam Hussein.
Chegou a vez do Egipto. Em 2011, Morsi, da Irmandade Muçulmana, ganhou a presidência numas eleições muito saudadas que observadores europeus acharam livres e democráticas. Porém, não terminou ali o reinado dos faraós pois o general el-Sissi achou por bem substituir, em 2013, o presidente eleito. Na vizinhança, a Síria sofria martirizada pela guerra entre grupos fundamentalistas rivais…
A Ucrânia também realizou eleições consideradas muito livres e democráticas. Yanukovich foi eleito presidente mas uma certa agitação civil quis aderir à União Europeia até que obrigou o presidente a exilar-se. Evidentemente, esquecido da União, a Ucrânia viu-se com um governo descrito como pró-nazi.
Entretanto, o jihadismo espalhava fogo e sangue por Argélia e vários países africanos, o Sudão se dividia em norte e sul e a Arábia Saudita agredia o Iémen. Quem olhar para o panorama de tais derivas e não souber extrair do que vê a conclusão óbvia deve estar distraído por excesso de mentalidade tecnocrática (ou seja, sem ver refugiados, perda de direitos humanos, democracia, segurança, bem-estar). Tem cunho americano reconhecível e ocupa o lugar matricial deixado pela cultura humanista abandonada pelo ensino geral europeu.

Sem comentários: