
Um clássico francês do período iluminista, querendo divertir-se, escreveu um livro sobre o que aconteceria se as pessoas perdessem a memória. Os patrões não distinguiriam os seus empregados dos clientes nem suas mulheres os maridos, os comerciantes os preços das mercadorias… Seria a confusão total.
De certo modo, talvez possamos ver a memória no centro fulcral do que uma pessoa é com o seu passado, o seu presente e o projecto de vida futura que tenha em mente. Lembra-se do seu nome para dizer quem é. A sua identidade engloba tudo quanto memoriza, conheceu e consegue recordar, incluso o rosto que lhe aparece no espelho a cada novo dia.
É, evidentemente, uma função do cérebro de capital valor. O tempo vivido parece constituir-se no indivíduo em camadas sucessivas, de tal maneira que, ao recordar algo muito antigo, terá a sensação de uma proporcional “descida”, como se a memória pudesse ser descascada, camada a camada, como as cebolas. Então, por mais que descasque, por mais que “desça” às funduras, a memória, inesgotável, continua presa nos meandros dos seus próprios corredores e labirintos.
Há umas dezenas de anos ainda havia quem defendesse a teoria dos “três cérebros” presentes no homo sapiens sapiens, logo, na espécie humana actual. Seriam eles o “cérebro reptiliano” e os seguintes herdados da nossa evolução antropológica; poderiam contribuir para o estudo científico de alguns casos de características comportamentais remanescentes. Mas o vento arrumou a teoria.
A complexidade do cérebro humano tem na capacidade funcional da memória uma imagem expressiva. Foi essa, sem dúvida, a intenção primeira do autor iluminista que li há quase setenta anos (Voltaire?) e que agora, por pirraça, a minha memória não me deixa citar. Imaginou uma situação verdadeiramente hipotética e descreveu as possíveis consequências.
José Saramago fez outro tanto ao escrever, por exemplo, os romances em que imagina uma população toda condenada à cegueira e a península ibérica separada de França, à deriva no Atlântico. Todavia, o autor francês conseguiu demonstrar bem, com fino humor, que todos os homens nascem iguais e que a desigualdade social vem depois… com a memória. Estamos em época de extremadas desigualdades, mas aqui fica, para o que hoje me falta, um louvor!
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