segunda-feira, 11 de julho de 2016

Em louvor da memória

memória.jpgDamos pouquíssima atenção à memória que temos a funcionar no cérebro. Tão natural e continuadamente, e tão intensamente a usamos que nem podemos, por um momento sequer, atentar no que em nós funciona. Apenas ficamos aterrados se acaso se nos apaga deixando às escuras num espaço vazio…

Um clássico francês do período iluminista, querendo divertir-se, escreveu um livro sobre o que aconteceria se as pessoas perdessem a memória. Os patrões não distinguiriam os seus empregados dos clientes nem suas mulheres os maridos, os comerciantes os preços das mercadorias… Seria a confusão total.
De certo modo, talvez possamos ver a memória no centro fulcral do que uma pessoa é com o seu passado, o seu presente e o projecto de vida futura que tenha em mente. Lembra-se do seu nome para dizer quem é. A sua identidade engloba tudo quanto memoriza, conheceu e consegue recordar, incluso o rosto que lhe aparece no espelho a cada novo dia.
É, evidentemente, uma função do cérebro de capital valor. O tempo vivido parece constituir-se no indivíduo em camadas sucessivas, de tal maneira que, ao recordar algo muito antigo, terá a sensação de uma proporcional “descida”, como se a memória pudesse ser descascada, camada a camada, como as cebolas. Então, por mais que descasque, por mais que “desça” às funduras, a memória, inesgotável, continua presa nos meandros dos seus próprios corredores e labirintos.
Há umas dezenas de anos ainda havia quem defendesse a teoria dos “três cérebros” presentes no homo sapiens sapiens, logo, na espécie humana actual. Seriam eles o “cérebro reptiliano” e os seguintes herdados da nossa evolução antropológica; poderiam contribuir para o estudo científico de alguns casos de características comportamentais remanescentes. Mas o vento arrumou a teoria.
A complexidade do cérebro humano tem na capacidade funcional da memória uma imagem expressiva. Foi essa, sem dúvida, a intenção primeira do autor iluminista que li há quase setenta anos (Voltaire?) e que agora, por pirraça, a minha memória não me deixa citar. Imaginou uma situação verdadeiramente hipotética e descreveu as possíveis consequências.
José Saramago fez outro tanto ao escrever, por exemplo, os romances em que imagina uma população toda condenada à cegueira e a península ibérica separada de França, à deriva no Atlântico. Todavia, o autor francês conseguiu demonstrar bem, com fino humor, que todos os homens nascem iguais e que a desigualdade social vem depois… com a memória. Estamos em época de extremadas desigualdades, mas aqui fica, para o que hoje me falta, um louvor!

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