segunda-feira, 19 de setembro de 2016

Ler asfixiante e dissuasor

domínio.jpgO programa era vasto, capitoso, efervescente, mas foi preciso, mais uma vez, respirar fundo e ganhar coragem para ir à feira do livro da minha cidade. Esta foi, em tamanho, a maior de todas e, como as anteriores, apontada para o Livro. Só que, envolvido em tanta festa, o dito cujo, poderoso veículo de cultura viva, quase passou despercebido.
A multidão afluiu ao jardim não para chegar à Feira mas para chegar à festa. Viam-se poucos leitores a desligar-se da corrente humana e a deterem-se nos stands para observarem mais de perto as edições expostas, as lombadas nas estantes, ou para pedirem um catálogo, uma informação. Apreciavam ali, obviamente, o espectáculo.

Daquela corrente humana quantos terão ido aos debates, às conferências, aos colóquios, aos lançamentos de novidades, aos filmes? Quantos terão apreciado raridades bibliográficas expostas, leituras para infância e juventude e etc. do “programa cultural” servido “por mais de setenta convidados” da organização? Viram instalações e animações, danças, algum circo, o balão de ar quente, comidas e bebidas escutando música a rodos e para todos os gostos, sobretudo populares…
Venderam-se ali, naturalmente, umas carradas de livros. De autores portugueses ou transnacionais, nomes mediáticos que a feira proclamou impressos nas berrantes capas dos montes e montes que por todo o lado se nos metem pelos olhos. Assim se agravou o problema: o mercado do livro vai asfixiando mais e mais a livre criatividade literária pelas imposições dos consumos das massas.
De facto, a indústria transformou o livro num bem de consumo generalizado, para leitores “domesticados”, ou seja, habituados a tipologias com ínfimas variantes. Resultado: desapareceram completamente novas correntes ou estéticas literárias, uns meros grupos de escritores, e ficou a estagnação no lugar da renovação. No panorama mundial apenas sobressaem autores-vedetas com nomes sonoros que pretendem impor-se como “marcas”.
Nas suas obras abundam artes de circo, passeios no jardim, música ambiente, um pouco de enredo para entreter as meninges, algo de cultural a temperar o preparado – e temos a obra feita. Isto lembra, de algum modo, a transformação por que passou a paisagem natural do nosso país. Os eucaliptos invadiram o território e expulsaram a variedade das espécies autóctones, o pinheiro bravo, o carvalho, a azinheira, o sobreiro, a alfarrobeira.
Os incêndios da floresta abrem caminho a novos eucaliptos que, nas opiniões correntes, queimados ou não, interessam às celuloses, bem exportável. Mas que dizer das leituras asfixiantes e talvez mesmo dissuasoras? Avança por aí uma colonização das mentes.

1 comentário:

Anónimo disse...

Obrigado, Arsénio, pela permanente lucidez.
Abraço,
Rui