quarta-feira, 27 de abril de 2011

A origem das espécies

Levou vinte anos a decidir publicar o livro que ficou como a sua obra fundamental. Previa a avalancha de reações adversas, nada científicas, que ia desencadear com a tese que propunha e não se enganou. Por fim, arrostando com preconceitos, insultos, propagandas malévolas e conservadorismos doutrinais, Darwin apareceu a defender A Evolução Natural.
Era o corolário dos estudos iniciados na viagem que fez a bordo da «Beagle». Durou quase cinco anos, até 1836, e deu a volta à Terra. Mas Darwin esperou até 1859 para lançar as bases científicas que permitiram ao mundo culto compreender o fenómeno da diversidade biológica.
Demonstrou que as espécies existentes provêm de um ancestral comum, assinalando ao mesmo tempo o papel da seleção natural. A obra emocionou os setores cultos e revolucionou as opiniões. Hoje, corrido século e meio sobre a primeira edição do seu livro, pode dizer-se, com inevitável tristeza, que os preciosos contributos de Charles Darwin (1809-1882) para a ciência e a cultura, lançados com desassombro e coragem, continuam a enfrentar resistências que, apesar de velhas, parecem inamovíveis.
Boa resposta lhes dá a exposição que assinala desde 2009 o bicentenário do nascimento do lembrado cientista inglês. Em Portugal, esteve patente em Lisboa e agora está no Porto, integrada no centenário da Universidade portuense (no palacete do Jardim Botânico, até 17 de julho). O mínimo que dela se pode dizer é, sem qualquer dúvida, algo como isto: organizada com critério e meios amplos, a exposição coloca-se ao nível dos méritos que distinguem o seu patrono.
Todavia, encontram-se ali motivos de muito diversa atualidade. Além da invalidação sumária do criacionismo, mito segundo o qual Deus criou «para sempre» todas as formas da vida,  que perdura na «Bíblia», a exposição invoca o problema da conservação da biodiversidade global que enfrentamos.  É uma questão, sem sofisma, das mais eminentes do nosso tempo e tanto mais vital quanto mais tem a ver de facto com a própria conservação da vida.
As espécies de flora e fauna que dia a dia desaparecem do planeta por radical extinção rompem os delicados equilíbrios do mundo natural e já ameaçam a segurança futura da espécie humana. Ninguém avalia todas as consequências finais das alterações dramáticas que ocorrem, sabendo-se porém que serão dramáticas. A espécie humana nasceu e desenvolveu-se no seio da natureza e dela faz parte intrínseca (para se alimentar, curar ou meramente existir) de tal forma indissociável que não conseguiria viver à parte.
Por outro lado, os frágeis equilíbrios da biodiversidade estão sob ameaça dos transgénicos  que, mais ou menos à socapa, invadem os campos. Os governos, inclusive europeus,  vão cedendo a este outro tipo de imperialismo: permitem a entrada e uso de sementes de produtos agrícolas com marca patenteada da Monsanto (sementes essas que não poderão reproduzir-se - somente os atos de compras periódicas), empresa americana que se acha no direito de patentear bróculos e couves lombardas, visionando explorações com mais de dez hectares e um mercado abastecido de géneros alimentícios com origem autenticada... e a ruína terminante da agricultura tradicional.

quarta-feira, 20 de abril de 2011

Uma nova Idade Média

Estou a escrever um conto fantástico. Será o último e será tão realista que o seu realismo vai parecer uma fábula fantástica, cheia de boa moralidade para edificação dos povos ocidentais. À entrada do século XXI, anuncia o advento de uma nova Idade Média.
O nosso século virado para o negrume medieval das trevas ignaras? Este século das proezas tecnológicas, dos esplendores da civilização, das liberdades democráticas, dos direitos do homem e da criança, das maravilhas infinitas? Vejamos então: se a realidade se torna pesadelo, a ficção toma-lhe o lugar.
Conta a história como a gente se convenceu a trabalhar mais, a produzir mais e a ganhar menos sob imenso stress. Conta como isso contribuiu, apesar de tudo, para se consumir mais e como a gente foi acusada de viver acima das suas possibilidades. Sem esquecer como os défices apareceram nas contas públicas  e serviram para justificar impostos mais pesados, sucessivos abaixamentos dos níveis de vida, e tudo por aí adiante.
De facto, a história é inacreditável, espantosa. Os patrões barafustavam, achando elevados os salários e os encargos sociais, e continuaram a deslocalizar as suas fábricas e postos de trabalho para longe, onde a mão de obra era descomplicada e baratinha. No seu sítio ficaram as produções ainda lucrativas, mas a sobreprodução desses bens estragou o mercado e o desemprego alastrou.
Os patrões garantiam que o Mercado, como um deus no céu, sabia controlar-se sozinho sem  regulação nenhuma e exigiam menos Estado e melhor Estado para responder à crise. Todavia, o «melhor» era, naturalmente, aquele que o respetivo governo lhes punha ao colo a pingar lucros, deixando para a gente sofrer a Austeridade, ideia de consequências perigosas conforme explica Mark Blyth. Entretanto, nações antes exportadoras tornaram-se importadoras e passaram a gastar dinheiro que antes ganhavam, os défices cresceram e as coisas complicaram-se.
De repente, um tsunami gigantesco surgiu e levou tudo de roldão. Com a falência dos bancos, o sistema financeiro deixou à vista, no seu interior, mais buracos do que pode ter uma torre de térmitas num escaldante deserto. Foi então o momento de a gente perder o sono e entrar em pânico.
As riquezas dos Estados sumiam-se debaixo de montes de dívidas em acumulação, os bancos descapitalizados estendiam a mão aflita para os Estados lhes valerem e a gente pasmada, a perguntar como criancinhas ingénuas onde iam esconder-se todas as nossas perdidas riquezas. Afinal, a gente só tinha de compreender que havia chegado o regime da Debitocracia, ou seja, a autoridade suprema do débito a ser cobrado. Imposto pelo FMI ou o Banco Mundial, em nome da alta finança especulativa, faz tombar as nações, uma a uma, como peças de dominó, e mostra que é ele o poder efetivo que governa o mundo.
Lança a garra ao que tem mais valor - o ouro, as propriedades, os bens raros - atirando a gente para o desamparo, o desemprego e a desvalia social.  Nações inteiras, saqueadas, não interessam aos senhores da Debitocracia depois de lhes tomarem posse dos rios, das estradas e das praças, condenando extensas massas humanas à proletarização.  E porque mais não digo, dou a palavra ao analista financeiro Max Keiser: afirma que o FMI, com o BCE atrelado, coloca em risco a União Europeia e o euro, visionando no horizonte um regresso do feudalismo.

segunda-feira, 11 de abril de 2011

Lendo o mundo me confundo

Sabem os acompanhantes deste blogue da atenção que temos vindo a dar às mudanças profundas e dramáticas em curso neste nosso tempo. Em jeito de crónica, opinou o cronista sobre questões variadas e tão variadas que, dir-se-ia, também ele se candidatava a ser mais um capaz de ter opinião pronta para despachar qualquer assunto. Evitemos, porém, a crítica fácil quando a pedra de toque consiste neste caso em avaliar se as opiniões aqui defendidas se baseiam a sério na realidade dos factos.
Não será o desconhecimento ou a dúvida mais ou menos momentânea desses mesmos factos que irá invalidar as opiniões expressas. Damos tempo ao tempo: as mudanças ocorrem e os movimentos do corpo social nem sempre reagem de pronto (e é assim que as ideias nas nossas cabeças correm atrás das novas realidades e a custo as alcançam). Habitamos num mundo perigoso e cada vez mais ameaçador, de modo que, talvez por isso mesmo, é agora que mais apetece prolongar as sonecas nos baloiços da rotina (acreditando nos políticos, confiando nos banqueiros) como que embalados em suaves harmonias de esferas celestiais.
Mas, desgraçadamente, tantas são as pancadas que se derramam do alto e tantas são as que se anunciam que o povo estremunha e desperta. Alarme: como pudemos chegar aqui?! Portugal está de novo diante do espelho, a interrogar-se como se não se reconhecesse.
Estamos pois a retomar o fado português que teimamos em viver como um psicodrama coletivo, em círculo vicioso, que se repete dentro do pátrio labirinto. Do 25 de Abril restam agora os cacos, da independência nacional não há sobras e o país de rastos põe-se a postos para receber de fora «quem o governe melhor» do que os seus naturais. A especulação de alta finança é que mais ordena, venha ela completar a destruição da economia nacional operada por criminosas políticas de direita e condenar-nos  a outro período de miséria salazarenta como povo sem colónias agora e sempre colonizado.
É portanto o fado português que regressa ao centro de múltiplas abordagens para motivar mais abordagens, a juntar à estante das antecedentes. Lá estão os textos de Oliveira Martins, Antero de Quental, Eça, Fidelino de Figueiredo, Eduardo Lourenço, Agostinho da Silva... Leonel Cosme, no seu livro Os Portugueses - Portugal a descoberto (Porto: 2007; Profedições, col. Bichos carpinteiros) cita também, nomeadamente, Fernando Pessoa, António José Saraiva, Miguel Torga, Jorge Dias, Jorge de Sena e Vitorino Magalhães Godinho.
Na sua demanda ao «ser português», este escritor e amigo percorre de relance os séculos da história nacional, tentando desenhar o perfil da identidade essencial deste povo. Esboça um «retrato» que nos interroga mais do que nos responde mas deixando no seu percurso, à atenção do leitor, uma boa porção de elementos que sinalizam a sua pessoal visão. Trata-se de uma nova reflexão, de flagrante atualidade, sobre as grandezas e as misérias deste povo que a cada passo tropeça e se desencontra consigo mesmo até pôr de remissa a Democracia.

terça-feira, 5 de abril de 2011

Eis a Nova Ordem Mundial

Esta mão errou ao escrever aqui. Há três anos aspirou por um governo mundial para governar o mundo sem perceber que o mundo  mergulhado em crise já estava servido. E agora, reconhecendo o erro porque consegue ver mais claro, vem corrigir o dito: está a funcionar plenamente uma Nova Ordem Mundial, o verdadeiro rosto do imperialismo.
É o nome de guerra da globalização, desenvolvida com destreza implacável por banksters  do cartel financeiro internacional (os tais das manigâncias impunes) e aplicada contra o euro, agora que o dólar se desfaz em oceanos  diluvianos de papel seco. A ofensiva foi lançada sob a bandeira da luta contra o défice que,  muito convenientemente, surgia nos orçamentos nacionais. Pretexto magnífico: o défice foi cavalo de tróia que entrou pela porta franca dos governos colaboracionistas para se apoderar por dentro, a pouco e pouco, dos Estados.
Serviu para aumentar os impostos, reduzir os encargos sociais, vender ao capital privado património público apetitoso, agravar o desemprego, elevar a inflação, beneficiar os lucros dos bancos, baixar o nível médio de vida, ampliar as desigualdades. Quando o equilíbrio orçamental ia de mal a pior e os Estados entraram em recessão, isto é, quando se fazia notória a necessidade de se mudar de política (da direita), a recessão levou os governos a descobrir que... dinheiro é dívida. Pedir empréstimos, a juros cada vez mais onerosos, transformou-se num jogo aberrante e as dívidas, monstruosas, foram declaradas incobráveis. Mas os banqueiros engordavam e queriam mais e mais.
O consumismo desatado serviu às classes médias para comprar casas, carros, viagens a crédito e agora a austeridade deixa tudo a nu: as famílias, as empresas, os bancos, os  municípios e os Estados encontram-se atolados em dívidas que não veem como podem pagar. Mas agora percebe-se o logro: é a Nova Ordem Mundial a comandar com  o seu  brutal «casino» financeiro. Nem a Islândia, aplicando políticas corretas após a bancarrota (e por isso banida dos media nacionais e internacionais), conseguirá talvez escapar-lhes.
As riquezas dos países ocidentais estão a ser desviadas em caudal para mãos sem rosto escondidas em parte incerta, através da simples troca dos nossos bens e privilégios  autênticos por papéis, rimas e mais rimas de títulos afinal sem valor. Quem duvida, arranje 14 minutos e veja este video no Youtube. Alguém torna a avisar-nos: povos e Estados em sucessão (Irlanda, Grécia, Portugal, Espanha...) enfrentam montanhas de dívidas em crescimento, a pagar pelas presentes e próximas gerações.
É absolutamente crucial perceber, neste tempo de combates mortais entre grandes ditaduras, que  temos de conhecer sem mais demora como funciona o sistema bancário global, ainda que isso possa motivar uma revolução (glosa de frase célebre atribuída a Henry Ford). A aliança objetiva da zona euro com o dólar não parece garantir à moeda única europeia o melhor futuro nesta conjuntura em que se torna vital afiançar um sistema monetário seguro e credível. De contrário, como diz o outro, o nosso dinheiro, na carteira ou no banco, será uma ilusão temporária... [Ilustração: réplica de "O grito", de Munch; quadro executado com vegetais (batata doce), de autor desconhecido.]

quarta-feira, 30 de março de 2011

O lugar dos idosos

Não basta discutir a sinonímia para reclamar que os idosos podem não ser «velhos». É preciso ir mais longe e notar que os costumes no nosso tempo não correm de feição para os seniores. Estorvam como trastes fora de uso sendo todavia reclamados para o lugar onde realmente uma necessidade grita por eles.
E eles acodem. São outra vez pais para os netos (e agora, felizmente, com outra disposição e maior disponibilidade), são caixa multibanco doméstica para a quantia que falta, são o biscateiro pronto para a bricolagem urgente ou o parecer oportuno. Então, sim, a família festeja por os seus idosos estarem ali ainda para as curvas e não arrumados no sótão.
Festejam eles próprios por se sentirem úteis, com lugar aberto. Mas quem cuida de lhes perguntar como se sentem sob o peso dos anos vividos, os desgastes, as queixas do corpo? Quem se dispõe a conter as pressas para conversar um pouco com os  idosos que vê cercados de solidão, ensimesmados e melancólicos, sentados pelos cantos, ansiosos de contacto humano para ficarem de repente animados, comunicativos, dir-se-ia quase rejuvenescidos?
Escasseiam os ouvidos abertos e multiplicam-se os «velhos» porque, de facto, as populações europeias em geral estão a envelhecer e a portuguesa não é exceção. Nem sobra teto onde caiba tanta gente reformada, aposentada, pensionista ou sem pensão nenhuma, pois a procura excede a oferta. Entretanto reina, com a força de um dogma, o culto das imagens de juventude, culto tão forte que parece fazer esquecer o infalível envelhecimento a quem há-de viver para tanto.
Diluiu-se a consideração tradicional em que eram tidos os idosos no seio das famílias e das comunidades. Nos países ocidentais, onde mais se implantou o consumismo e o culto da juventude, cresceu também, com a população idosa, uma tendência para encarar os «velhos» como refugos descartáveis do sistema de produção em crescente desumanização. Mas outra é a consideração e mesmo o respeito que envolve essa população nos países orientais.
Em algumas dessas sociedades, os idosos mantém uma autoridade e até um prestígio entre nós já surpreendente. São povos, no entanto, no limiar do consumismo e pouco interessados em erguer o ícone da juventude ao máximo esplendor, pois nem pressa têm de empurrar meninos e meninas para a idade adulta.  Podem afirmar, com mais propriedade do que nós, que quando um idoso morre, é uma biblioteca inteira que desaparece.
Realmente, é durante uma longa vida que se acumula e decanta a experiência do mundo. Saber ouvir as vozes da experiência vivida ajuda a melhorar o conhecimento do passado para melhor compreender o presente e perspetivar o futuro. Vale sobretudo para ativar as memórias.
Justa e certeira é, aqui e agora mais que nunca, a tese de Gandhi: via na forma como os animais eram tratados a marca de uma degradação da humanidade. O culto do novo em contínua (meteórica) renovação, na sociedade do desperdício, fica assim com a culpa de uma atroz desvalorização do ser humano. Será esta a dor que empana o olhar de tantos idosos?

quarta-feira, 23 de março de 2011

A ideologia do futebol

O futebol traz inerente uma ideologia que é particularmente visível embora poucos a notem. É a ideologia do capitalismo. Lembra-nos que a popularidade do futebol acompanhou o advento da publicidade, do marketing, dos media.
Tudo isso sinalizou a implantação crescente de uma mentalidade capitalista e do sistema socioeconómico afim em acelerado desenvolvimento após, digamos, 1950. No século do petróleo, entrámos no consumismo da era imperialista.
As regras do jogo no campo de futebol são, a nu, as do mercado clássico. Importa perceber, pois, a matriz ideológica que define esse jogo: entusiasma quem alinha na vontade de concorrer, isto é, de competir, partilhando essa vontade com os jogadores da equipa que o espectador apoia na exibição; exalta o herói individual ainda que o integre na equipa quando se torna necessário o esforço conjunto ao modo da matilha que se organiza para a caçada.
No campo de futebol triunfa, tal como no mercado, o protagonista mais forte, sendo mais forte o que dispõe de maiores recursos financeiros para comprar no “mercado” internacional os jogadores profissionais com palmarés recomendáveis. A competição alimenta o espectáculo e o espectáculo faz-se com cada golo introduzido na baliza. Derrotar o adversário concorrente, esmagá-lo e ganhar o jogo, ainda que à custa de investir gigantescas fortunas na equipa, torna-se o objectivo supremo.
O jogo serve para apurar um vencedor, o mais poderoso, e o aplaudir. Transforma-o num “escolhido”, bafejado com um talento raro, valiosíssimo. Se a vitória lhe sorriu, não proveio da sorte ou dos azares do jogo (porque a bola é redonda, o pontapé não aplica uma ciência exacta e o vento sopra em variadas direcções); assinala-o com uma estrela especial tal como os donos de grandes fortunas se sentem miraculados e tão próximos de Deus que o instalam em capela privativa na própria casa.
Mas a façanha do mais forte passa a valer no plano simbólico - o campeonato, a taça. O preço real de cada golo enfiado na baliza de cada vitória atinge níveis tão loucos que deixa os clubes arruinados. Depois de transformar o jogo (que é e deve ser actividade lúdica) em espectáculo consumível, os golos limitam-se a conceder vitória, fugaz porque logo tem que ser continuada-confirmada por outra.
Estimulando a competição pela competição, o jogo justifica a ambição individual e estabelece a desigualdade e a injustiça, lembrando que o capitalismo não é de essência democrática. Como no jogo do Monopólio, também no futebol se infiltra uma ideologia subliminar que interioriza a respectiva ética. As suas regras podem ser subvertidas por árbitros corruptíveis.
Assim o sistema capitalista e o futebol dançam tão bem o tango avançando abraçados pelo mundo que fazem seu. [Ilustração: pintura de Keith Malett.]

quarta-feira, 9 de março de 2011

Sempre em Galiza

Os portugueses denotam uma certa relutância, ou indiferença, perante as hipóteses de relacionamento solidário, a sério, com os vizinhos da Galiza. É uma sensação que aparece no terreno, a um certo nível das relações intelectuais, à medida que descemos do Alto Minho para sul, especialmente a partir de Coimbra. Ao transpor as águas do Tejo, dilui-se nas brisas.
Talvez haja uma explicação para isso, uma explicação advinda do complexo de circunstâncias acumuladas pela história. Observando o documento cartográfico de 1066 (aqui ao lado), que indica a verde a velha Gallecia do período romano, pode-se ter uma primeira visão do assunto. Abrangia uma franja peninsular desde a Corunha, no topo norte, e terminava além de Leiria, embora outras fontes, porventura mais consistentes, se detenham na linha do Mondego.
Os amigos galegos gostam de nos lembrar que a Gallecia foi por muitos séculos o nosso território comum com capital na augusta Bracara. Eu, quem sabe se por força das minhas origens, acho que é fácil e bom gostar do povo galego, posto que tenha levado o pé ligeiro a Tui já com 18 anos e andasse nos 40 quando entrei a valer em contacto com a sua cultura (lembro-o aqui). Manifesto-lhes, a esse povo e sua cultura, uma solidariedade desvaliosa mas sincera, apoiando, se apoio me pedem, e lamentando atitudes de quem lhes responde com escusas e polidas reticências.
Comecei a sentir esta resistência há uns bons quarenta anos, quando a Galiza lutava por autonomizar (leia-se: proteger) a sua fala materna da contaminação pelo Castelhano. Uma porção de intelectuais portugueses ou desconhecia o berço de origem do Português ou, pura e simplesmente, virava as costas ao assunto. A nossa indiferença declarou-se ao nível oficial e diplomático aquando da organização da Comunidade de Países de Língua Portuguesa, composta por oito Estados (Timor-Leste incluído)... e sem a Galiza.
Gostaria de pensar, sem saber o que pensar, que continuamos ainda virados para sul, em luta pela Reconquista, em assédio a Lisboa e projetados até Faro. Demoro-me, porém, a contemplar o povo irmão que temos a norte do rio Minho, hoje com uma pitada de nostalgia porque encontro num blogue de lisboetas motivo para evocação e saudade. Benedicto Garcia aparece ali a considerar que José Afonso e ele cantavam a mesma canção (de protesto) e que a Galiza, para Zeca, foi «pátria espiritual».
Não se lembrou aquele amigo galego que veio cantar ao Porto, no início dos anos '70, por convite meu. Tinha então creio que um único disco com quatro cantigas, editado em Barcelona em 1968, e pertencia ao grupo Voces Ceibes (Vozes Livres). Foi o comum amigo Manuel Maria que nos pôs em contacto (estava eu a publicar-lhe a primeira obra de poesia junto com outra, de outro poeta galego, Celso Emilio Ferreiro) e os caminhos ficaram abertos para novos  encontros.
Tantas lembranças a vir (e serão só minhas?!): Benedicto deu cá entrevistas na rádio, as suas cantigas entraram no ar, actuou ao vivo, estabeleceu contactos entre nós. Um deles foi com Manuel Freire, então com a «Pedra filosofal» em evidência. Logo, em 1972, visitou Zeca em Setúbal e começou a amizade luso-galega documentada com nome de rua em Santiago de Compostela, onde nasceu em 1947 o próprio Benedicto.