segunda-feira, 7 de novembro de 2011

A mim, Liberdade!

Repousamos em cama de ideias feitas. São, ou parecem ser, consensuais tanto como esta: vivemos em democracia. Ora comecemos a pensar: a democracia é o regime da Liberdade consagrada nas liberdades cívicas, sabem bem disso quantos já experimentaram a ditadura.
As liberdades cívicas são inerentes à democracia, evidenciam mesmo o fôlego democrático, mais ou menos intenso, que o regime pode ter em cada momento. Sendo termos com distinta sinonímia, Liberdade e democracia unem-se na realidade em perfeita simbiose. Uma requer a existência da outra para que ambas reinem em afirmada plenitude.
Os cidadãos são livres para votar conforme entendam mas têm de ater-se à lista eleitoral em presença ou optar por votar em branco. Votam em programas políticos, designando para o efeito representantes, mas depois nada podem fazer se os seus representantes traírem o programa. O sistema representativo, tão querido pelos ideólogos da democracia formal, distancia de facto os eleitores dos eleitos após o sufrágio.
A questão, neste ponto, amplia-se. Já não bastam as liberdades cívicas e a democracia, é preciso mais, que reine a igualdade. Isto é, que o cidadão com capacidade eleitoral continue cidadão após o sufrágio, conservando intacta a sua liberdade em paridade com o seu representante.
A Liberdade, expressão rutilante da democracia, é atropelada quando um patrão alega que não obriga ninguém a ganhar seiscentos euros mensais. Ele sabe que o trabalhador aceita porque não encontra quem mais lhe pague, pensando  embora que o patrão se aproveita sabendo que outros patrões recusam pagar-lhe melhor. Não há ali igualdade entre um e o outro, nenhuma liberdade ou réstia de democracia.
Idem quando o cidadão liga o televisor ou lê a imprensa. Cada vez mais «temáticos»,  os canais assemelham-se uns aos outros ao ponto de os telejornais de canais diversos cobrirem as mesmas notícias quase em perfeita sincronia. Nos jornais do dia o cidadão encontra as narrativas noticiosas modeladas pelas imposições da Verdade Única que o privam de informação mais aberta e pluralista.
Até no supermercado, quando o comprador de uma embalagem de quilo de arroz  pretenda só meio quilo, ou dois ovos em vez de seis, se sente privado de liberdade. A normalização impõe-lhe aquela quantidade com tanta desenvoltura como a farmácia que lhe vende uma caixa de comprimidos quando pretendia apenas um. A Liberdade e a democracia florescem na terra cultivada, por isso generosa e fecunda, dos canteiros da igualdade (igualdade que é regra suprema de harmonia e portanto de justiça).

terça-feira, 1 de novembro de 2011

A ordem é empobrecer!

O povo da Grécia vive uma tragédia a que devem dar atenção os outros povos do Ocidente e em especial os restantes da União Europeia. A tragédia dura há anos, de certo modo desde a Segunda Grande Guerra, prolongando-se agora numa agonia implacável e tanto mais implacável quanto mais dura. Nessa duração, porém, poderão os outros povos aprender, se quiserem, a evitar tal sorte.
Na verdade, a Grécia vai à frente do «pelotão» de países em crise como candeia que alumia o caminho traçado pela avidez gananciosa do sistema financeiro internacional. Os Portugueses, sobretudo, irão ver-se no lugar dos Gregos se não arrepiarem caminho e, em clamorosa maioria, travarem a ruinosa política pretendida pelas troikas externa e interna. A dívida pública (ou soberana, do Estado) e a crise financeira internacional servem de álibi para, em nome da «crise», extinguir as conquistas sociais obtidas com a democratização do 25 de Abril e condenar Portugal, outra vez salazarento, ao «terceiro mundo».
A indignação pública é importante indicador da reação popular, mas verdadeiramente decisiva será uma compreensão, mínima que seja, de como entramos na espiral das dívidas e no garrote que subjuga as nações para as saquear. Um governo excede o seu orçamento gastando em obras de fachada e origina um défice, vende ao desbarato património público apetitoso para compor as contas, o défice agrava-se (com a destruição de setores produtivos, austeridade e recessão), pede empréstimos e mais empréstimos à banca, as obras de fachada prosseguem e as dívidas crescem, os juros trepam, e surgem as dificuldades de «financiamento da economia nacional». O governo isenta-se de culpas e de responsabilidades, alega que o povo viveu acima das suas possibilidades e convida-o a aguentar sacrifícios mais e mais pesados... A ordem é clara: o geral empobrecimento.
Neste ponto faz-se lembrar quem há uns anos, agourento, fazia uma previsão incrível: a alta finança ensaiava na União Europeia, com a introdução do euro, uma estratégia que iria afundar as nações do sul em proveito das do norte. Hoje já se vê que a moeda única não poderá de facto ter futuro numa união de 17 membros com ritmos de desenvolvimento desiguais, assim como uma composição ferroviária com 17 carruagens em rodas de tamanho e feitio diferentes.
Então é indispensável que a população em geral perceba até que ponto o governo serviu a estratégia da alta finança especulativa em óbvio prejuízo do povo que o elegeu. Perceba até que ponto perdeu pelo caminho a democracia e a liberdade. Até que ponto as dívidas acumuladas pelo Estado transformam os cidadãos em modernos escravos que terão de lutar pela libertação.

terça-feira, 25 de outubro de 2011

Classe média e democracia

Nas páginas da história aprendemos que a burguesia surgiu como classe social nova quando o clero e a nobreza tinham nas mãos o poder.  Burgueses eram então os habitantes dos burgos, pequenas cidades fortificadas, que se foram dedicando a comerciar com os camponeses da região e desenvolvendo. Enriquecidos e já bastante poderosos, os burgueses ergueram-se por fim para disputar o poder aos seus detentores exclusivos.
Foi o período revolucionário da burguesia. Agindo em nome do povo, a nova classe introduziu o sistema sociopolítico que se consagrou e que reconhecemos como Democracia - o poder do povo, pelo povo e para o povo. Porém, nos últimos tempos, aparece transformada: da «burguesia» sociológica restam por aí uns grandes capitalistas e uns extratos sociais populares com designação diversa, de classe média.
A concentração da riqueza operou no terreno uma distinção nítida ao ponto de já se tornar equívoco falar, como outrora, de pequena ou média burguesia enquanto subclasses.  De facto, desvaneceram-se. No terreno expande-se agora a classe média (ainda prefiro o plural: classes médias), nivelada por baixo à força de políticas agressivas de despedimentos em massa, salários e pensões de pobreza.
Não foi isto resultante de realização democrática, resultou antes da negação da democracia (cujas leis, será bom lembrá-lo, assumiam a defesa do pequeno contra o grande ou do fraco contra o forte porque o pequeno ou o fraco eram a maioria). Deste modo chega ao fim a democracia na medida em que assistimos à expansão das classes médias, ou seja, das camadas populares massificadas. Governadas agora não apenas por clero e nobreza, também pela única burguesia que se eleva aos céus carregada de ouro.

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Indignação ateada

Grande parte do mundo desperta sob a violência do capitalismo selvagem. A população de mil cidades em mais de oitenta países (oito em Portugal) proclamaram 15 de outubro o dia da indignação. O povo saiu à rua e promete continuar para exigir democracia direta e o fim de uma distribuição injustíssima de riqueza que engorda 1% espremendo 99%.
É a indignação global, espontânea como  lenha seca posta na fogueira ateada no seio das classes médias. Reagem à agressão sem qualquer orientação apontada para um centro (a alta finança não tem fisionomia individualizável e estende-se por todo o lado, rápida como mortal pandemia), salvo a ocupação de Wall Street, simbólico emblema da concentração financeira. Ainda assim, o que lhe falta em orientação definida sobra-lhe na mais abrangente e pura afirmação cívica.
A indignação popular justifica-se amplamente. Governos, políticos e partidos que há trinta anos se revezam no poder perderam imensa credibilidade perante quem os elegeu e sofre com programas de austeridade, desemprego e extinção do Estado social. Da democracia resta um rótulo sem conteúdo, os programas da governança dão o máximo aos bancos sacando das classes médias (e agora ameaçando mesmo com um MEE, «o novo ditador europeu» para  eficaz rapina).
Está na hora de mudar resolutamente de atitudes, de romper com o passado e de rasgar caminhos novos. A situação reclama radicais mudanças: sistemas democrático, económico e financeiro, mentalidades, modos de consumo, civilização, ecologia. Mudanças estruturais que uma rede  espessa de interesses nefastos impede (com a informação manipulada da comunicação social à frente), rede apostada, sempre, em que a indignação pública, podendo ligar com revolta, jamais chegue a revolução.
Um trecho acabado de ler algures sintetiza: o poder hegemónico da alta finança, puramente especulativa, está desligado da economia real - mas parasita-a. Transforma tudo em capital para alimentar o capital e transformar o capital. O capitalismo atual já não pode coexistir com a vida humana.

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

A comida e a cultura

Têm abundância de motivo os adeptos dos prazeres da boa mesa que se justificam repetindo a frase em voga: comer é um ato de cultura. Pois é, mas ocorre a pergunta: quem mastiga comida lenta alcança até que ponto a verdade factual do dito? O sentido da frase é amplo e é rico, vale a pena sondá-lo nem que seja num breve bosquejo.
Teremos, mais uma vez, de pegar em palavras para as abrirmos e vermos os vestígios que nelas se contém, pois em questões idosas como as da comida teremos que nos limitar a uma abordagem filológica. Realmente, relacionadas com o alimento, aparecem palavras cujas raízes etimológicas ainda podem surpreender os leigos. O saber parece ter começado pela capacidade de distinguir o sabor...
O sapore latino (sabor, gosto, odor, perfume, ação de provar) confunde-se com o sapere (saber, ter gosto, exalar cheiro ou odor) e a sapientia (sabedoria). Gustare (gostar, provar, comparar), assim como degustar (provar, apreciar, saborear), remete igualmente para a capacidade humana do paladar enquanto órgão de distinção inteligente. Nesta base, nem admira já que o symposium (banquete, festim) tenha expandido o seu campo semântico até abranger a designação do nutrido volume que víamos nos consultórios médicos.
Os requintes da boca estimularam sempre os requintes da faculdade pensante, eis o que pode concluir-se. Todavia, mesmo com as meninges bem acordadas por ricos manjares, talvez só uns poucos dos comensais sentados à mesa serão capazes de consciencializar que é pela alimentação que todos se integram no sistema da natureza em que vivemos e nos faz viver. O «ato de cultura» ficaria completo.

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Ler textos digitais

Lembram-se? Apareceu na última Feira do Livro um stand dedicado exclusivamente a ebooks. Foi a primeira vez, de modo que a novidade ficou assinalada aqui.
Não era para menos. Demonstrava, com a eloquência dos factos, que a edição digital de obras literárias já atingia tamanho que merecia «casa» própria para aparecer no certame dos editores. Cá dentro, tal como além fronteiras, a novidade expandia-se rapidamente enquanto os leitores ainda atulhavam as estantes domésticas de papel impresso e tão rapidamente que nem tempo conseguiam já para o cheirar.
A resistência ao texto virtual está assim a mostrar-se em dissipação. De facto, habituamo-nos cada vez mais a ler nos ecrãs dos nossos computadores e telemóveis. Mudar dos ecrãs para os designados (à inglesa) ereaders  acaba por ser mudança bem mais pequena e fácil do que parecia.
Realmente, as coisas aceleram-se e evoluem bastante mais depressa do que poderíamos supor. A leitura de textos digitais progride no terreno, silenciosa e veloz como jacintos de água na pateira de Fermentelos. Acredita-se que não vai desbancar a circulação do livro impresso mas com certeza irá impor-se, não tarda, de forma concorrencial.
Vantagens óbvias: a edição embaratece a leitura e facilita a circulação dos textos; para os leitores, acresce a dispensa de espaço domésticos (estantes) e uma ágil arrumação. Podem não ser numerosas as obras literárias que se encontram de momento em oferta com formato digital no conjunto global dos textos digitalizados em Português (jornais e revistas, textos diversos). Esse número, porém, irá crescer, acompanhando de algum modo o que se passa na área do Inglês.
Eis porque é de saudar a formação, pela Fundação Gulbenkian, de um grupo que vai estudar durante dois anos o processo da leitura em suporte digital. O sociólogo Gustavo Cardoso, do ISCTE, coordena o grupo constituído por um naipe de entendidos. Pretendem investigar como é que as pessoas lêem e o que muda, para essas pessoas, com a nova tecnologia.