terça-feira, 10 de abril de 2012

Escultura ao ar livre


Pouco espaço resta, actualmente, à escultura, para se exibir e guardar, que não seja museu ou ar livre. Mas no museu entra hoje somente a obra consagrada, ficando cá fora muito de bom e do menos bom, senão do detestável que se vê por aí, nas rotundas em vertiginosa propagação, como mamarrachos erguidos à categoria de arte. Contudo, entre as macaqueações de escultura que surgem e se multiplicam no espaço público, aparecem obras com verdadeira dignidade estética, merecedoras de atenta contemplação. Estas obras, expostas ao ar livre, portanto em pública fruição, concretizam o que parece ser a autêntica função da escultura admirável que não «cabe» nos museus, instituições que, cabe lembrá-lo, tão poucas pessoas frequentam. É o caso deste díptico de autoria do escultor Bruno Catalano (França). Resulta fortemente expressivo. O Emigrante que parte não parte inteiro: deixa para trás a terra que leva, agarrada às solas dos sapatos, com um enorme buraco aberto no peito; o Imigrante que chega ao destino é o estranho homem dividido entre um lá e um cá, sem verdadeiramente a nenhum lado pertencer por inteiro. O drama humano da emigração é paralelo a outro de não menor atualidade - o drama dos refugiados, seja de conflitos étnicos, religiosos, políticos, regionais ou nacionais. Sem esquecer os refugiados naturais, deslocados por cataclismos ou transtornos insuportáveis do clima (poluição, erosão, desertificação) ou de crise.

domingo, 1 de abril de 2012

Informação suja

Que género de formação receberam os estudantes de jornalismo saídos dos cursos com diploma na mão e agora a trabalhar nas redações? Ouço a rádio, vejo televisão, leio jornais e o escândalo invade-me. Que informação, que jornalismo corre atualmente pelos canais?
Tanto quanto sei, quando os primeiros cursos superiores desta profissão nas suas variadas vertentes surgiram em Portugal (isto é, após a democratização, por volta de 1980), a formação não dispensava Deontologia e mesmo disciplina de Ética. As exigências das normas e regras aprendidas faziam-se sentir, naturalmente, logo que os profissionais da informação entravam ao serviço sob a alçada de um Conselho Deontológico. Uma dessas normas básicas, a mais imperativa, consistia em ouvir sem qualquer exclusão as partes envolvidas num dado conflito e, se houvesse que emitir opinião sobre o caso, o jornalista deveria assinalar claramente que era isso mesmo, uma opinião... justificável.
Nuns trinta anos, período de uma geração, operou-se uma viragem brutal. A subversão que varreu para fora da porta ética e deontologia e que obrigou os jornalistas a aceitar empregos precários e sem direitos foi acompanhada pela concentração, em boas mãos, dos órgãos de comunicação social. Implantou-se, nestas condições, a verdade única, o jornalismo tendencioso, a informação suja (tendenciosa, manipuladora, prostituída).
Não mais se cuidou, com autêntica isenção, de ouvir as partes envolvidas em cada história, de separar com nitidez o facto da opinião e oferecer informação clara e credível. Os colaboradores independentes, incómodos, foram banidos dos seus órgãos na peugada dos jornalistas da velha guarda com brio profissional e nome respeitado. A narrativa jornalística passou a reproduzir quase mecanicamente a versão que o lado mais forte punha a correr.
Os golpes do 11 de setembro ricochetearam na Europa, provocando desavenças étnicas internas sangrentas e destruidoras que levaram à fragmentação da Jugoslávia. Depois da agressão ao Iraque, houve a bendita «primavera árabe». As facções iraquianas digladiavam-se em guerras intestinas enquanto tunisinos e egípcios enchiam as praças  reclamando, à semelhança de sérvios e bósnios, pelo que não têm e lhes foi prometido.
Bem instalada (embebida) a informação no registo único, preparado estava o cenário que tornou invisível a divisão em dois do Sudão e chegou para justificar a agressão à Líbia. Os insurrectos que desencadeavam ali uma guerra civil eram os heróis da comunicação social, abrindo caminho para a façanha seguinte, contra a Síria. No quadro do Médio Oriente, a  negra sorte da Palestina varrida do mapa já era chaga velha, crónica e sem cura.
Assim se espalhou a insegurança e uma geral ânsia de pacificação. Veja-se o Kosovo «independente» ou a Tunísia às voltas em busca do seu destino tal como o Egito, a Líbia, o Sudão... e o Iraque, e Israel, e o Irão? Os princípios da honra humana, da legalidade e da justiça andam hoje tão subvertidos que os defensores da democracia e dos direitos humanos até já parecem iguais, senão piores, do que os regimes e os políticos ditos criminosos que combatem de armas na mão e que, atacados, se defendem.

sexta-feira, 23 de março de 2012

A rapariga nua

Esta rapariga não está a vender o corpo, sequer a exibi-lo em pose provocante. Assume naturalmente o que é seu, assumindo quem é de corpo inteiro. Nu, bonito e limpo como a verdade.
O fotógrafo deve ter pressentido na rapariga a centelha de algo raro. Algo como uma estreme candura - palavra que me detém, pensativo.
Há tanto tempo que não leio nem escrevo o vocábulo ou, candidamente, algum seu derivado, e o pormenor prende-me numa conjectura que neste momento não estou para atender (reina o despudor, o exibicionismo, a coisificação das seduções femininas).
Pelos olhos que vêem estas imagens no powerpoint já mil outras imagens passaram com exposições de corpos femininos despidos. Maquilhados e depilados a preceito, bem fotografados e em poses insinuantes, provocadoras ou mesmo obscenas, esses corpos não deixaram na retina a menor impressão.
Porém, relembro com clareza as imagens desta rapariga nua com a bicicleta verde que tornei agora a receber (e a “reler”), enviadas por mão amiga certamente depois de rodarem por meio mundo.
Já as conheço e reconheço e, no entanto, estou a revisitá-las com simpatia.
A hipocrisia das convenções correntes estabelece, nestes casos, a condenação sumária da moça e de quem, assumido mirone, com descaro isto escreve. Mas eu, desafiado, preciso de apontar a assunção do próprio corpo onde este se revela, natural como a juventude, porque é atitude bastante mais rara do que pode supor-se.
A nudez cândida nada tem a esconder. É sincera e honesta sem artifício e também, por vezes, corajosa. Eis o que a moça me comunica, a sorrir, nas diversas posições que toma de bicicleta na mão, com a franqueza simples da prática naturista.
Aparece num campo ervado, talvez perto de casa ou de algum moinho, iluminada pelo esplendor sanguíneo de um poente que lhe põe a luzir o ínfimo pelame dos relevos da sua grácil anatomia.
Imagino-a holandesa. E mais, que o fotógrafo seria seu namorado (porque, sem dúvida, o fotógrafo gostava dela). Mas, vamos supor, os anos correram, a moça casou, rodeia-se agora de crianças.
Guarda consigo, no fundo da arca, junto com as recordações mais íntimas, estas fotografias que revê com gosto e nostalgia. Recordam-lhe a frescura daquele corpo que foi seu. Lembra-se então de quando se deu pela primeira vez ao namorado tendo na memória a observação atenta que antes fizera ao espelho da beleza do seu corpo e de ter sentido no beijo que recebia que era aquele seu mesmo corpo lindo que a beijava através do seu rapaz...

sexta-feira, 16 de março de 2012

A estreia de um Poeta

A regra convencionada estabelece que a estreia literária de um autor ocorre com a publicação do seu primeiro livro. No entanto, esse autor pode ser já bastante conhecido pelas colaborações soltas que foi espalhando através dos anos nas páginas da imprensa até se fazer notar. É este, de novo, o caso do brasileiro Alexandre Guarnieri.
O seu primeiro livro, Casa das Máquinas (Editora da Palavra, Rio de Janeiro, 2011, 184 pp), ao evidenciar uma voz poética bem amadurecida, revela também a dimensão e a qualidade do investimento que recebeu. Trata-se sem dúvida de um projeto pessoal ambicioso e convincente, longamente decantado e trabalhado pela força criativa do autor. Nas mãos do leitor, o livro, folheado, apresenta o apurado grafismo de uma obra que em si própria se harmoniza definitivamente com corpo e conteúdo.
Alexandre Guarnieri, carioca nascido em 1974 e professor de área creio que próxima da educação pela arte, terá trabalhado no seu projeto, ao que julgo, sem pressas e com afinco até nele encontrar a sua voz. Soube esperar e amadurecer para finalmente poder surgir em plena forma. Sendo Casa das Máquinas, portanto, obra de estreia, é também uma vigorosa afirmação de novo poeta que marca o seu lugar no panorama literário luso brasileiro atual.
As singularidades destes poemas abrem-se em diversos sentidos inovadores. Mas não é poesia de acesso fácil para o leitor comum. Um apresentador da obra, Marcus Fabiano Gonçalves, poeta e antropólogo, explica: «Afinal, é dos paradoxos de uma robusta e delicada maquinaria da linguagem que Guarnieri nos fala. E como ela é blindada por um invólucro viscoso contra as investidas de decifração pela reflexividade, só mesmo à poesia ela poderia entreabrir-se assim, majestosa e circunspecta.»
Em posfácio, outro apreciador, o poeta e crítico Mauro Gama, começa anotando: «Não existe lirismo, na poética [...] de Guarnieri. Sua atitude estética é de um realismo essencialmente objetivo, e imediato.» Na verdade, a Casa das Máquinas organiza um minucioso maquinismo verbal de engrenagens, engates, válvulas, turbinas,  rebites, parafusos, lâmpadas, chips eletrónicos, óleos, ferros, combustões, todo um mundo mecânico que evoca Cesário Verde e a Dispersão de Mário de Sá-Carneiro. Resulta numa metáfora tão poderosa contra este mundo terrivelmente desumanizado que a denúncia envolve a obra de A. Guarnieri num singular halo poético. [Imagem: pintura naïf de autoria não identificada.]

sábado, 10 de março de 2012

O Estado e a crise

Com menos Estado há menos empregos, menos PIB, tribunais e justiça, inclusivamente fiscal, menos cuidados hospitalares e segurança nas ruas. Há menos ensino público, transportes populares, fiscalização e proteção do consumidor. Haverá até, naturalmente, menos contravenções de trânsito e menor permeabilidade das fronteiras para drogas ilegais, além de menos corrupção geral. 
Um Estado forte serve capazmente os seus cidadãos. Não se vê um defensor coerente da Democracia e do desenvolvimento social a exigir menos Estado. Isso é a marca de uma política de direita, alinhada com a defesa dos interesses da classe dominante instalada nos lucros gordos da atividade bancária.
Erguer como bandeira de qualquer programa político o corte de umas pretensas «gorduras» do Estado esconde a intenção de atentar contra os direitos conquistados ou os interesses essenciais da maioria da população nacional. Tal intenção é marcadamente de direita, pois serve uma minoria à custa da maioria. É uma política com simples máscara democrática.
Um Estado forte garante a solidez das instituições, a estabilidade social, o desenvolvimento coletivo. Tem vontade e forças para agir corretamente, com rigor e ética, no plano das relações internacionais que a nação mantenha. E garante a defesa da melhor soberania ainda que a nação atravesse um período de dificuldades económico-políticas.
A fonte legítima da soberania do Estado é, como bem se sabe, o seu povo - o povo que, por definição, forma a grande maioria da população eleitoral. Nesta base, o Estado organizado assume de raiz uma natureza democrática. Ora, na complexidade do tempo presente, quando já nem se discute a natureza de classe (burguesa) do Estado, torna-se imperativo declarar e perceber com clareza máxima que os Estados (sem soberania porque têm dívidas «soberanas»!) foram ou estão sendo tomados de assalto pelas mais poderosas oligarquias conjugadas no projeto da globalização.
Na presente conjuntura, defender o Estado contra o ataque da usura gananciosa lançado pela especulação financeira internacional é dever de todo o cidadão avisado e consciente. Não há outra forma, eminentemente democrática, de evitar a ruína (e a extinção?) das classes médias - a grande maioria eleitoral - e escapar à conhecida e sofrida espiral dos défices crónicos, endividamentos, programas de «ajuda»,  austeridade e recessão, enfim, de todo o ciclo do empobrecimento. Em suma: ou as classes médias conseguem evitar o colapso do «seu» Estado ou se afundam com ele.
É preciso notar que estamos a ser arrebatados por um imperialismo financeiro global que subjuga os Estados para, através deles, espoliar as massas populares. À frente aparece, na União Europeia, o novo Tratado que institui o MEE e outros dispositivos. Tudo se prepara para liquidar a soberania que as nações mais enfraquecidas ainda detenham e estender o drama da Grécia às restantes... caso as massas populares europeias prefiram discutir o sexo dos anjos tendo o inimigo à porta.
No plano do debate das ideias ou em disputa eleitoral, somente uma política radicalmente de esquerda conseguirá opor resistência coerente e eficaz a tal golpe. Porém, não parece admissível que as massas eleitorais, afundadas em apatia induzida, se virem para a esquerda digna do nome reconhecendo embora que essa esquerda jamais se sentou nas cadeiras do poder. Irão, por isso, votar como sempre?! 

sexta-feira, 2 de março de 2012

Diálogo a correr

Isto já não vai lá assim... Assim como? Com papelinhos, eleições, propagandas, comícios, discursatas, partidos eleitos, lideres promovidos, políticas legitimadas. Mas não acredita nas eleições? São o princípio da democracia! Você não é democrata? Sou, claro, convictamente. Da verdadeira democracia, não de um remedeio, um simulacro. E então? Quero a democracia por vir, plenamente restaurada, numa sociedade desperta e livre de gritantes desigualdades. Mas que partido vê você a defender essa sua democracia que esteja em posição de ganhar eleições? Os eleitores não lhe confiariam os votos, é isso? Então concorde comigo: isto já não vai lá assim... Assim como? Por este caminho: eleições e promessas políticas logo esquecidas. Mas não será essa a política-espetáculo o que o povo quer? Ora ora!, quererá mesmo este empobrecimento, sempre mais do mesmo? Pois é, estou a ver, precisamos realmente de políticos e de política a sério que nos tirem do buraco. Então, se os partidos que os eleitores de cabeça formatada podem eleger não nos tiram do buraco em que nos meteram, resolva você: desiste dos partidos que se revesam no poder, ou desiste deste povo que teima em os eleger? Ora, nem uma coisa nem a outra. Os partidos são necessários, a democracia não os dispensa. Esta «democracia»? Não funciona mais para o povo que trabalha e produz, funciona para os banqueiros. Mas o povo é a fonte do poder soberano. Foi! Agora diga-me: sabe porque votou o povo como se viu? Por medo. Conhece pouco e receia muito, vendo-se constantemente atacado e enganado. Mas a comunicação social não pára de manipular a informação, dispensa bem a censura prévia. Sim, é escandalosa tanta lavagem aos cérebros que nem deixa ver o que está à vista. Está à vista o quê? Que o povo, fonte do poder soberano, o deixou fugir, primeiro para as mãos dos seus representantes, os políticos, e a seguir para os sugadouros da alta finança europeia e internacional. Mas tudo isso não foi por um processo democrático? Ora, os políticos pouparam demais o povo ao incómodo de se pronunciar e hoje nem o povo decide nada com real importância nem sequer os políticos arriscam decisões vitais inovadoras, preferem deixar-se levar e juntar-se debaixo do guarda-chuva da Nova Ordem Mundial que tudo governa graças ao poder financeiro exercido por gananciosos especuladores não eleitos. Então... e a democracia? Vai como a vê, de rastos. E o poder soberano do povo? Foi usurpado e tão subtilmente que o povo adormecido mal se apercebe. Então... que fazer? Discutir soluções, discutir uma vez e outra até ao raiar da nova aurora. Bem precisamos dela, dessa nova aurora, metidos neste túnel escuro e sem luz anunciada!