terça-feira, 7 de janeiro de 2014

"Apanha de feno", 1909; uma das imagens a cores originais do fotógrafo russo Sergei Mikhailovich Prokudin-Gorskii (1863-1944) usando os três filtros de cores - amarelo, azul, magenta - que a técnica posterior ainda hoje mantém 

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

Ler... um século depois

Ainda acho nas minhas estantes belas surpresas. A última é o romance Sua Alteza Real, de Thomas Mann, venerável edição da Portugália, 301 pp. Incrível: ainda por ler!
Não larguei da mão a “novidade”. Sem data impressa de publicação (remonta decerto aos anos ’60), saiu integrada na col. Romances Universais. Encetei a leitura apreciando a cor parda e o cheiro do papel, o rebordo das folhas sem o acerto final de guilhotina por mim já abertas à faca, e sobretudo o magnífico ensaio introdutório de Georg Lukács transcrito do livro que o prestigioso crítico húngaro dedicou à obra do prémio Nobel de 1929.
Faço-me compreender? Aspirando a esvaziar a casa, venho doando desde há uns quatro anos caixas e mais caixas dos meus livros a duas bibliotecas públicas mas o facto é que vejo poucas prateleiras como queria, despojadas (terei que prosseguir com as doações?). Custa a esvaziar o que acumulei ao longo da vida e isso, inesperadamente, dá-me esta sorte de ler a obra-prima que antes perdia!
E aqui estou com Sua Alteza Real, autêntica jóia literária editada na Alemanha em 1909, de modo que a leio… passado um século! Thomas Mann (Lubeque, 1875-Suíça, 1955), um autodidacta, evidencia neste romance o esplendor do seu talento reafirmado em 1926 com Montanha Mágica. É também o processo de uma outra decadência numa pequena corte que a obra de 1909 ficciona no ambiente típico do ocaso oitocentista europeu.
Com efeito, por convenção dos historiadores, o séc. XIX estendeu-se até à eclosão da Primeira Grande Guerra (1914). Então ainda se espalhavam pela Europa bastantes reinos de modesto tamanho em acelerada decadência tal como o antigo regime (monárquico). É o processo dessa decadência que Thomas Mann narra com precisão minuciosa e toda a sua arte literária.
As dinastias reinantes, com minguados rendimentos, já exerciam um poder apenas formal (meramente representativo, ao jeito das monarquias actuais), enquanto a aristocracia arruinada, vivendo dos magros rendimentos das suas propriedades agrícolas, se constrangia a virar-se para a indústria e o mundo dos negócios. Entretanto, nos pequenos reinos atolados em dívidas avultava a burguesia habituada a aplaudir os príncipes para se vitoriar a si própria. Thomas Mann realça em especial o valor do gesto formal no sistema sociopolítico representativo.
Para o príncipe, grão-duque, a popularidade era “uma porcaria”. Mas considerava: “A grandeza humana é uma coisa miserável e por vezes parece-me que todos os homens deviam reconhecê-lo e conduzir-se com bondade e simplicidade uns com os outros.” Outras personagens do romance surgem igualmente com uma densidade psicológica certeira a sublinhar o tempo de viragem que viviam.
Sua Alteza Real maravilha com o fulgor da sua escrita, a precisão da sua estrutura romanesca e, sobretudo, a abundância prodigiosa de elementos culturais que aplica (lembrando que Mann levou doze anos a escrever Montanha Mágica). Autores e obras destas livram-nos dos novos autores que escrevem todos os dias das tantas às tantas e publicam todos os anos livros de espantoso sucesso no mercado de consumo. Estes novos estão na literatura não como criadores mas sim como recolectores e, em última análise, predadores da Literatura.

sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Acordo Ortográfico: stop?

Amontoou adversários acérrimos, provocou polémicas e ateou discussões entre as facções rivais desde que foi assinado em Lisboa em 1990. Mas quando o Acordo Ortográfico entrou oficialmente em vigor em Portugal, e o Brasil e Angola adiaram semelhante decisão, as posições estremaram-se. Agora, em Lisboa, levanta-se a questão: que fazer?
Realmente, a situação em que Portugal se vê é um tanto desconfortável. Esperar passivamente pela decisão a tomar pelos maiores países integrantes da comunidade lusófona talvez até 2015? Mas quando irão aplicar os sete países subscritores a reforma acordada?
Enfim, dois deputados decidiram levantar a questão na Assembleia da República. Na presente situação, justifica-se bem a iniciativa seja qual for o resultado que venha a obter. O Acordo Ortográfico parece ferido de morte e, se acaso pode salvar-se, mande notícias.
Vejamos, eu nunca me pronunciei contra a reforma. Ao invés, apoiei-a desde o princípio percebendo o valor da unidade linguística a preservar no espaço da lusofonia. Quando entrou em vigor, legalmente, passei a escrever, respeitando-a, no blogue e nos meus livros. Recentemente, em face da triste situação colocada aos portugueses, distanciei-me do Acordo, fiz corpo com os opositores e retornei à antiga ortografia (ver aqui, em Etiquetas: “Ortografia”).
Estou portanto à vontade para apoiar uma iniciativa que se dispõe a abordar a questão. Acho mesmo que era tempo de reagir. A situação precisa de ser analisada, discutida e convenientemente decidida.
Deve salientar-se que a ortografia oficial portuguesa acata uma reforma admitida por autêntica concessão negocial. Não era a nossa ortografia, certamente não era também a de nenhum outro país lusófono, mas foi a solução consensual encontrada pelos negociadores. Seria bonito que os acordos internacionais fossem honrados.
Finalmente, irá declarar-se que espécie de futuro espera a Comunidade de Países de Língua Portuguesa. A CPLP tem sido considerada, desde que nasceu, organização com mais sonhos do que músculo para os realizar. Se vier a desaparecer, será lamentável.
Lamentável continua a ser, de facto, para nós, que o único Museu da Língua existente no quadro lusófono tenha sido criado no Brasil e, note-se, que consiga receber milhões de visitantes (entre os quais, naturalmente, poucos portugueses se contarão).

sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Um lobo das estepes

Era já idoso quando nos conhecemos e, há semanas, sumiu-se deixando o mundo mais baço e perdido nas suas trágicas cegueiras. Tinha publicado um extenso conjunto de obras e era autor menos lido do que respeitado e ainda menos estudado. Estava pois a morar, como ele dizia, na penumbra dos escritores supranumerários.
Não parecia ralar-se com isso. Só raramente notava a pouca leitura que tantos dos seus livros conseguiam mas fazia-o sem rebuço, como uma consequência natural de menor importância. Promovia-os (promovendo-se) tão pouco que muitas das pessoas das suas relações pessoais directas até ignoravam as suas publicações, a sua projecção na escrita, vislumbrando dele, no melhor dos casos, algum artigo solto em jornal ou revista.
Contudo, no ambiente literário, o seu caso não era o dos escritores que produzem obra de vulto e depois, esmorecendo durante longos anos, caem no “esquecimento em vida”. Ele continuava a escrever e a publicar, mas, como figura pública, era ínfimo o alarde que fazia dentro da ruidosa praça literária. Na esfera restrita da sua existência (onde sobressaíam notabilidades porque eram realmente “amigos”, não por serem notáveis), consideravam-no homem de carácter, convivente e solidário, incansável militante das causas nobres aliás agora tristemente impopulares.
Mas aquele homem vivia em óbvia solidão, não estabelecia relações com figuras “interessantes” e, apegado à sua independência, recusava pertença a grupos, clubes, lobbies. Neste ponto, citou um dia lorde Byron: “A consequência de não pertencer a nenhum partido será a de que os incomodarei a todos.” Sorriu num trejeito muito seu e acrescentou: “pelo que a todos dou o direito de me incomodarem a mim”…
Tivemos conversas surpreendentes. Idoso, ainda lhe sobrava energia moral para defender a sua extrema solidão contra a ordem burguesa que afinal era a sua e a nossa. De repente fez-me lembrar “O Lobo das Estepes”.
Este romance de Hermann Hesse, publicado na Alemanha em 1927, marcou especialmente a obra do Autor, prémio Nobel em 1946. O movimento juvenil dos anos ’60 colocou-o como seu próprio expoente de radicalidade. A figura-símbolo central, Harry Haller, o “lobo” solitário e desirmanado, também exprimia em época de trágica crise – semelhante à que afunda em desgraçada decadência a Europa na actualidade - uma rejeição total da cultura, da política, da comunicação social existentes, então como hoje.
Quis reler o livro. Não o encontrei em casa, pedi-o na biblioteca pública. Nele topei um conceito que acabara de ouvir na conversa com o escritor meu contemporâneo: “O verdadeiro sofrimento, o autêntico inferno, esse só advém na vida humana onde e quando duas épocas, duas culturas e duas religiões se intersectam.”
Mais adiante detive-me para reler e tornar a reler: “O burguês é por isso mesmo, pela sua própria natureza, uma criatura de fraca vitalidade, medrosa, receosa de todo e qualquer abandono da sua pessoa, facilmente governável. Por isso colocou, no lugar do poder, a maioria; no lugar da força, a lei; no lugar da responsabilidade, o exercício do voto.” “A grande maioria dos intelectuais, a maior parte dos homens artistas, pertence a esse tipo.” [Imagem: escultura de Bruno Torfs, Austrália.]

sábado, 14 de dezembro de 2013

O que é ”Kitsch”?

O termo veio do alemão e tem utilização crescente. Um vulgar dicionário regista o que significa: “produto artístico, literário, de utilidade doméstica, etc., de qualidade inferior, mas com cunho sensacionalista, que pretende ir ao encontro do gosto popular.” Assunto esclarecido e encerrado?
Não, está em esclarecimento e continua aberto. Assunto agora reavivado pelo contributo de João Medina (“O Kitsch português, reflexões sobre o inautêntico na história cultural lusa”) publicado há dias num blogue (http://malomil.blogspot.pt/2013/11/o-kitsch-portugues.html). Agradeço ao prezado amigo que mo trouxe ao conhecimento.
O termo, na origem alemã, deriva de “atamancar” (obra mal feita) ou impingir como boa coisa de qualidade inferior. Mas, em Portugal, em alguns círculos sociais, o kitsch até tem categoria próxima do belo ainda que, agrega o dicionário, seja “manifestação cultural ou artística que explora estereótipos sentimentalistas, melodramáticos ou sensacionalistas”. Porém, o sentido real do termo é obviamente pejorativo: é tendência, expressão ou conjunto de objectos considerados de mau gosto ou de má qualidade por terem características associadas ao gosto popular.
O trabalho do Prof. João Medina – um ensaio muito ilustrado – desfaz quaisquer confusões assentando desde logo no conceito do que deve entender-se correctamente por kitsch. Abre com epígrafe do ensaísta Abraham A. Moles, autor de basilar livro sobre o tema: “O mundo dos valores estéticos deixou de ser dicotomizado entre o Belo e o Feio; entre a arte e o conformismo estende-se a vasta praia do Kitsch.”
Para Moles, a civilização do consumo produz a cultura de massas, identificável como kitsch. Surge a indagação: poderá a produção industrial ser arte?
Vem a seguir uma outra epígrafe, do espanhol Antonio Muñoz Molina (“«Kitsch» nacional”, Babelia, 21-IX-2013), e é extensa: “…o kitsch é o império dos espaventos descontrolados da emoção e a sensibilidade, da desproporção entre a substância e o invólucro (…). O kitsch define-se por comparação porque a sua natureza é derivada e parasitária. O kitsch está para a arte como a margarina para a manteiga, o Arcopal para a louça, o romance histórico para a História, a Isabel Allende para o melhor Garcia Marquez, (…). O que os anúncios turísticos da Junta da Andaluzia para a realidade da Andaluzia (…). O kitsch é inseparável da efusão nacional porque esta consiste na translação para o público daquilo que em rigor pertence ao âmbito das emoções privadas. (…).”
Estabelecida a abordagem correcta e precisa da questão em foco, João Medina passa a aplicar o conceito exposto ao “kitschismo” acéfalo que invade a realidade portuguesa sem esquecer ideologias e doutrinas conservadoras. À literatura (os best-sellers José Rodrigues dos Santos, Margarida Rebelo Pinto, ou Dan Brown, Leon Uris, etc.) e à arte (Joana de Vasconcelos, José de Guimarães, o Malhoa de “O fado”, etc.) segue-se o teatro, o cinema, a arquitectura, a música… Acende-se, inevitável, a polémica e aí vem a discordância caceteira pedir desforra das “ofensas”. Enfim, o que é kitsch? [Imagem: cartaz-réplica do conhecido quadro "O Fado", de José Malhoa; autoria omissa.]

sábado, 7 de dezembro de 2013

O sonho da eternidade

É inesgotável a necessidade humana de sonhar. Os teístas crêem na vida eterna, os artistas, escritores incluídos, crêem na perenidade das suas obras. Cada existência individual, condenada à sua efémera duração, suspende-se por vezes para questionar se a vida é ou poderá ser só “isto” sem mais transcendência, apenas o breve rasto num caminho que depressa o vento dilui.
Sonhar com a eternidade resgata a condição humana à sua contingência ao projectá-la na tela do infinito. Assim elabora a arte, toda a arte que podemos admirar enquanto afirmação estética da plena dignidade do homem. E neste sentido aparece o novo livro do poeta Izacyl Guimarães Ferreira.
Izacyl, na sua longa carreira (nasceu em 1930, Rio de Janeiro), já publicou mais de vinte livros, um dos quais, Discurso Urbano, mereceu o prémio de Poesia da Academia Brasileira de Letras em 2008. Desde então acrescentou à sua obra mais três títulos e uma antologia. Reaparece agora com Altamira e Alexandria (ed. Scortecci, São Paulo, 2013, 66 pp), onde os seus poemas tomam as pinturas rupestres da caverna de Espanha e a antiga biblioteca do Egipto como símbolos expressivos de uma humana “ânsia de eternidade”.
O tema essencial deste livro, envolvendo a questão (agónica) do que é nascer para morrer, isto é, a atitude ou as ideias que o Autor pode ter perante a vida no seu ocaso, assenta num pano de fundo que implica a questão do crepúsculo em que parece afundar-se tanta civilização e cultura no Ocidente, senão no mundo inteiro. A voz do poeta, octogenário (nasceu no “meu ano”), sintoniza ou coincide com as sombras do nosso tempo nos quarenta poemas que compõem este ciclo.
Yracyl evoca pirâmides e mausoléus, pedras lavradas e páginas escritas, casas e mobílias domésticas, álbuns e retratos contra o mortal esquecimento, pois “a grã ceifadora não perdôa / se o coração do homem já não sôa”… “porque é preciso não morrer de todo”.
Num breve antelóquio, Antonio Carlos Secchin considera esta poesia uma “ode ao humano”. Tem razão. Com estilo conciso, exacto e seguro, percorrido por um fio de lirismo, oxalá Izacyl Guimarães Ferreira atinja Portugal e encontre apreciadores. Veja-se:
“O sonho é prosseguir, continuar, / como o prazer do amor e toda a caça / a eternizar o instante e expondo a raça, / é não perder-se no pó que se espalha / ou na limalha a dispersar-se à toa, / é perpetuar-se em pedra, ser pessoa.”

quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Formiga navegante em fuga de inundação sai por portaló e alcança terra firme [foto: autor desconhecido]