A folhinha não mente: a semana começa ao domingo, mas a ordem estabelece que a provação dos cinco dias entra à segunda-feira e logo de manhã. Uma pessoa sai então à rua de mau-humor, entra no café para ingerir o seu quente, escuro e perfumado viático matinal, aprecia o calor do ambiente e dos comentários aos resultados da véspera, solta uns remoques azedos pois continua mal-humorada e corre para o emprego, onde, com mais vagar, entra no fórum habitual que por ali já o espera…
É preciso comentar tudo, mesmo os comentários dos comentários e isso, que já vem da véspera, vai estender-se pela tarde e a noite, nos jornais e nas conversas de rádios e canais de televisão. E… querem ver?! Um relâmpago golpeia o negrume cerrado que parecia amortalhar tanta gente, nela iluminando de golpe novidades maravilhosas.
Subitamente, este país aparece habitado, de norte a sul, por uma população atenta e participante, pronta a tomar a palavra e a intervir em defesa da sua opinião, porque a tem e exerce o direito de se fazer ouvir. Está bem informada e - como é isto possível? - sabe juntar e analisar os factos com lucidez, declarando ou apenas deixando transparecer a inclinação que deveras sente pela cor da sua bandeira. E sabe exprimir-se, e fala com entusiasmo e convicção!
Mas outras surpresas, ainda mais incríveis, saltam. Este povo mostra possuir muito boa memória! Mergulha e torna a mergulhar nos seus arquivos individuais, vasculha nas suas recordações, cita leis, regulamentos e regras aplicáveis, compara factos, raciocina com segurança, analisa, conclui...
Quem diz agora que este povo, a tal maioria silenciosa do Portugal profundo, que não tem memória? Que, por exemplo - chegando uma ou duas horas antes ao seu lugar - não participa com entusiasmo nos confrontos que lhe interessam? Quem diz agora que se afunda em apatia quando lhe sobram motivos para reagir e, zangado, se encabritar?
Uma sucessão de escritores aplicaram-se tentando estudá-lo, entender a sua alma esquiva: desde Estrabão até Antero de Quental, Almeida Garrett, Oliveira Martins, Agostinho da Silva, Eduardo Lourenço, José Gil… Não concordam entre si e nós, hoje, não podemos concordar com eles.
Dizem por aí que somos um povo enigmático? Tão incompreendido quão incompreensível? Pois seja, os tugas perdem a cabeça no jogo da bola e ficam depois sem cabeça para as questões da política (por isso o neoliberal Gaspar os vê como valioso ativo nacional!), mas nada do que é humano lhes é estranho. [Autor da imagem (parcial): Rafael Bordalo Pereira.]
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