Conhecimento científico e conhecimento humano nem sempre caminham a par. Goethe, “homem total”, parece colocar no âmago da tragédia do seu Fausto a questão: o desenvolvimento da ciência pode chegar a afectar o desejável desenvolvimento humano. No nosso tempo, tecnocrático e convulsivo, muito mais que no do génio alemão, ilustre figura da cultura humanista, a questão reveste-se de especial evidência.
Supor que todo e qualquer avanço científico eleva servindo o conhecimento humano é banalidade confortável que pouco resiste à análise. Sem questionar, por exemplo, a invocação da dinamite para sustentar que a ciência e a investigação não têm culpas de qualquer mau uso de um invento, teremos de reconhecer o que muda no mundo e quanto muda a cada resultado da investigação científica transposto para a ciência aplicada. Nesse ponto, em que se processa a aplicação utilitária da transposição, é que Mefistófeles espreita e pode surgir...
Centrou Goethe a trama da tragédia na relação conflitual entre a vontade de saber mais do Dr. Fausto e o perigo da queda (a perda da alma), ou, na sua própria expressão, “Daquilo que não sabe, o homem carece”. Nestes termos, o sentido da ciência que se procura e adquire descerra também e afirma a dimensão da liberdade humana perante o mistério. A perda da alma corresponde à perda do que um homem ou a humanidade sacrifica ao entregar o que realiza e sabe em mãos mefistofélicas.
Ora, o que hoje nos parece mais óbvio é a captura intensa dos avanços científicos por interesses industriais que manipulam os mercados e o afastamento das populações dos benefícios excepto no papel passivo de meros consumidores (ignorantes inclusive dos perigos que os cercam). Os investigadores científicos trabalham cada vez mais em espaços fechados (por vezes de universidades públicas) e em proveito directo de corporações. Os conhecimentos adquiridos, ainda que possam valer deveras para a promoção humana, vão assim ficando acantonados em círculos restritos.
É o caso de um conjunto de investigações desenvolvidas em áreas como a designada engenharia genética, as neurociências ou as sementes, alimentos e animais transgénicos. A manipulação da estrutura genética natural dos seres vivos - de flora e fauna – expõe o mundo a perdas de uma gravidade que ninguém conseguiu medir e que será bem pior do que “perder a alma”. As neurociências devassam até ao fundo o processo vivo das emoções e dos comportamentos humanos, medindo-os em escala de previsibilidades (i. é., transformando, portanto, o homem em máquina).
Enfim, continuo a ler o Fausto de Goethe, cientista e escritor que concebia a sua própria existência como obra de arte querendo viver a realidade em poesia. É verdade: acredito que cada livro também lê o seu leitor. Compete ao leitor que sou interpretar as referências que colho da “minha” leitura.
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