A leitura de um clássico da literatura universal, como Fausto, de Goethe, deixa-me em cima de algo semelhante a uma prancha de navegar. Escorregando de súbito, vou disparado pelos ares ao encontro de nova onda, ou seja, ao encontro de outros Faustos. Não é possível, deveras, enterrar o dente na obra goetheana sem convocar outras obras alusivas ao mesmo mito.
A primeira é Doctor Faustus, de Marlowe (Christopher, 1564-1593), o clássico inglês que antecipa Shakespeare; surgiu em 1588 e decerto muito poucos portugueses a terão lido no original, pois não parece ter sido vertida para a nossa língua materna. Há notícia de dois autores franceses contemporâneos que retomaram o tema a seu especial modo: Paul Valéry (1871-1945), com Mon Faust, e Michel Butor (1926-), com Votre Faust.
Recentemente, de surpresa, juntou-se um português à lista. Nada menos que Fernando Pessoa, do qual saiu Fausto – Tragédia Subjectiva (Lisboa, Abril de 2013, Relógio de Água). A edição, com 279 pp, deve-se a Teresa Sobral Cunha.
No prefácio (excelente introdução!) Eduardo Lourenço considera a obra “um aparente desastre”, um Waterloo de Pessoa na “sua aventura poética e espiritual concebida e realizada ao mesmo tempo como elegia e epopeia do Desastre.” Mas temerário, sem dúvida, teria de ser o rasgo do poeta, ainda jovem, a medir-se com Goethe. Lourenço aponta o resultado: “é a mais orgânica e coerente obra de Pessoa”…
Trata-se, mais uma vez, de encenar o mito fáustico colocando as forças do bem e o mal em debate no plano de uma solidão ontológica estreme em que o ser humano, buscando conhecer, assume, diz E. L., “a realidade infernal [do] próprio pensamento, enquanto pensamento de Fausto” representado por Pessoa. E ali temos o criador e a consciência do homem, a morte e os enigmas da vida e do mundo na tragédia do “pensar alto o solilóquio de uma solidão ontológica nos limites do pensável e do tolerável”. Com este intelectualismo exacerbado e tal carga de subjectividade, temos em corolário: “a essência de tudo que existe na realidade é ilusão”.
Um aspecto central da tragédia, prendendo-se com as interrogações à razão e à verdade do Eu, roça num sonho angustiado a impossibilidade de um dizer (dizendo-se) total, isto é, os limites da contingência humana. O acto de escrever põe o escrevente a sentir que jamais poderá dizer tudo quanto quer, atingindo o enunciado definitivo, absoluto. Não há dúvida, porém, que o Fausto pessoano, traduzindo uma experiência pessoal, é obra onde já se revelam os labirintos mentais do Autor a anunciar a floração das futuras heteronimias.
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