Uma peripécia vivida ontem acordou-me a memória para uma reminiscência que me traz a sorrir. Vem muito a propósito. Por isso a descarrego e deixo aqui, dando-a como veraz lição de vida.
Naquele tempo, havia na minha comunidade de origem um sapateiro que punha cabedais de molho numa selha e depois os batia sobre os joelhos em pedra chata e redonda como uma broa. Quer dizer, era sapateiro à antiga que víamos no cubículo com avental de pele suja, sovela e fios na mão, sentado em banco baixinho, ao lado de mesinha coberta de ceras, pomadas, fios e formas, tachas e protectores. Fabricava botas e sapatos de encomenda para a vizinhança e botifarras e sapatinhos para as feiras dos arredores.
Eram muitos os talentos do homem (p. ex., bombo, caixa e pratos eram dele na banda que animava os bailes da região) e, humorista à sua maneira, abundava em picardias e matreirices. Quando um cliente lhe aparecia à porta a queixar-se de que os sapatos novos lhe magoavam os pés, recebia-o com irrepreensível gentileza. Estão apertados? Deixe-os aí, sim, sim, vou pô-los na forma e já ficam bem…
O freguês ia recuperar os sapatos, tornava a calçá-los e repetia a queixa. Ah, continuam apertados?! Mas já apertam menos, não? Sim, estão melhorzinhos, mas… Está bem. Vou metê-los outra vez na forma e alargá-los um pouco mais, até posso metê-los em água, com cuidado, é claro, para não ficarem largueirões...
Tornava o freguês a enfiar os pés no aperto, sofria com as bolhas nos calcanhares, até que em desespero voltava à loja do sapateiro. E ele, dando à sovela, admirava-se: Caramba, ainda não estão bem?! Vou metê-los outra vez na forma, vais ver que te assentam como luvas.
O homem não tornava a aparecer à porta com os sapatos na mão e queixas na boca. Nessa altura já os usara, sofrendo, uns tantos dias e os pés, calejados, tinham-se habituado ao sofrimento. Ou desabafara o seu calvário e alguém, caridoso, o prevenira da marosca.
Na verdade, o sapateiro não se inibia de contar as suas proezas aos mais próximos, gozando com a inocência dos fregueses que ludibriava. Prometia fazer e não fazia, pois os sapatos “apertados” ficavam ali, no monte, até a pessoa os buscar. Então pegava neles, passava-lhes a escova cuspindo e era capaz de sentenciar que todos temos nos nossos próprios pés umas formas ideais.
O sapateiro sabia meter em apertos a clientela que mal servia, convencendo-a a aguentar as dores com promessas que sabia tão incríveis que era o primeiro a divertir-se com elas. Acabou mal: sem fregueses, teve de emigrar e entretanto extinguiu-se o tempo dos sapateiros políticos para chegarmos a este desgraçado tempo de políticos sapateiros da classe mais barata, a dos remendões.
3 comentários:
Sem palavras, pois é metáfora de génio!
Abraço,
Isabel
Entendes então que os sapateiros remendões querem agora obrigar-nos a calçar as botas velhas e relhas que atirámos para o lixo na saudosa festa do 25 de Abril de 1974?!
O mais espantoso é que há muita gente que ainda nem está perto de perceber que esses "políticos sapateiros" estão a martelar furiosamente nas condições que se construíram após o 25 de Abril, para retomar o "paraíso ditatorial" que lhes encheu o ego de todo-poderosos até ao "24 de Abrir".
Isabel
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