Trago hoje na mão um exercício de “escrita criativa”, género em voga. Tem fiéis apreciadores, que dispensa de leituras trabalhosas e de grandes investimentos intelectuais, e agrada aos “criadores” com um naco de imaginação e habilidade para extrair a história do buraco de uma agulha com a ponta da mesma agulha. Acontece também que tenho aqui ao lado um Fulano a incomodar-me porque, imaginem, não desiste de se contemplar de olhos fechados!
Quer que o ajude a realizar a proeza, embora eu o avise de que, tanto quanto sei, jamais alguém terá conseguido ver-se de pálpebras cerradas. Mas o F. vai teimando, arrebatado pela sua obsessão, e não desiste. Quer conhecer a cara com que ficará e irá aparecer aos pósteros depois de morto.
A obsessão agravou-se quando ele, colado ao chão diante do espelho, treinava a rapidez das pálpebras desejando chegar ao ponto de as encontrar fechadas estando ainda abertas. Pois não chegara aquele famoso cowboy do far west a ser mais rápido do que a sua sombra? Fulano não queria ficar-lhe atrás!
Mas ficou. Afligiu-se e, revoltado, não aceitou a derrota. Virou-se para a fotografia, recurso formidável.
Era estática. O instantâneo captava a imagem no centésimo de segundo em que a cena exterior se gravava no interior da câmara. E ali aparecia ele, finalmente, de pálpebras descidas, a fingir-se de morto.
Não era, certamente, a mesma coisa. Respirava, tinha as faces mornas, os beiços com alguma cor. Ora F. queria mesmo observar o aspecto final da sua fisionomia cadavérica, entendendo que, de corpo enfiado nas roupas, era a cabeça, senão apenas a cara, a derradeira lembrança que dele restaria.
Acrescia um pormenor. Ele estava prevenido contra os perigos da fotografia, os ludíbrios da iluminação sobre o objecto. A imagem estática introduzia uma realidade “outra”, não a realidade que procurava.
Ontem à tarde, diante do televisor, notou algo que via há anos no aparelho: a demora, de um segundo ou dois, que a tv repetia quando estabelecia ligação com repórter no estrangeiro. Fulano teima agora em arranjar alguém que o filme com câmara vídeo e, do outro lado do mundo, com ele online na Internet, lhe envie de volta as imagens em fluxo para o seu computador… que ele receberá com o bendito atraso!
E assim o leitor percorre o texto, chega ao fim e o que recolhe? Um pouco de nada. Nada exemplar. [Imagem: de Lorenzo Muttotti, Brescia, 1954.]
Quer que o ajude a realizar a proeza, embora eu o avise de que, tanto quanto sei, jamais alguém terá conseguido ver-se de pálpebras cerradas. Mas o F. vai teimando, arrebatado pela sua obsessão, e não desiste. Quer conhecer a cara com que ficará e irá aparecer aos pósteros depois de morto.
A obsessão agravou-se quando ele, colado ao chão diante do espelho, treinava a rapidez das pálpebras desejando chegar ao ponto de as encontrar fechadas estando ainda abertas. Pois não chegara aquele famoso cowboy do far west a ser mais rápido do que a sua sombra? Fulano não queria ficar-lhe atrás!
Mas ficou. Afligiu-se e, revoltado, não aceitou a derrota. Virou-se para a fotografia, recurso formidável.
Era estática. O instantâneo captava a imagem no centésimo de segundo em que a cena exterior se gravava no interior da câmara. E ali aparecia ele, finalmente, de pálpebras descidas, a fingir-se de morto.
Não era, certamente, a mesma coisa. Respirava, tinha as faces mornas, os beiços com alguma cor. Ora F. queria mesmo observar o aspecto final da sua fisionomia cadavérica, entendendo que, de corpo enfiado nas roupas, era a cabeça, senão apenas a cara, a derradeira lembrança que dele restaria.
Acrescia um pormenor. Ele estava prevenido contra os perigos da fotografia, os ludíbrios da iluminação sobre o objecto. A imagem estática introduzia uma realidade “outra”, não a realidade que procurava.
Ontem à tarde, diante do televisor, notou algo que via há anos no aparelho: a demora, de um segundo ou dois, que a tv repetia quando estabelecia ligação com repórter no estrangeiro. Fulano teima agora em arranjar alguém que o filme com câmara vídeo e, do outro lado do mundo, com ele online na Internet, lhe envie de volta as imagens em fluxo para o seu computador… que ele receberá com o bendito atraso!
E assim o leitor percorre o texto, chega ao fim e o que recolhe? Um pouco de nada. Nada exemplar. [Imagem: de Lorenzo Muttotti, Brescia, 1954.]
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