sexta-feira, 15 de novembro de 2013

Pintura é “coisa mental”?


Uma frase de Leonardo, o da Vinci, andou-me no juízo às voltas tempos infindos. Dizia simplesmente: “A pintura é coisa mental”. O que pretenderia expressar o génio da Renascença? 
Coisa mental, isto é, criação da inteligência, a pintura, obviamente, é. Então, como admitir que Leonardo ia registar algo tão óbvio (ele que, ó espanto, até caligrafava as frases escrevendo-as pelo inverso de maneira que eram legíveis para um leigo apenas quando “recompostas” num espelho)? 
Quem gosta da arte e aprecia o convívio com pintores, frequentando-lhes os ateliês, habitua-se a descobrir a figura que surge no limiar da imagem. A imagem forma-se naturalmente, quase irresistivelmente, estimulada por algumas sugestões visuais. Logo, é “coisa mental”… 
Toda a pintura? Sim, evidentemente, na medida em que a imagem visual se forma no cérebro que a recebe. Seria este o pensamento, então inovador, de Leonardo? 
Perceber isto, porém, para mim não foi fácil. Mas calhou-me ler um texto admirável de autor creio que japonês sobre o poder da linha, a linha do desenho traçada pela mão do artista, e a sua tremenda expressividade. O nome do autor sumiu-se, ficou apenas a revelação.
Basta a linha, o minimal risco preto-no-branco que descreve no papel um contorno para que o objecto, a coisa nascente adquira forma, volume, relevo – vida! Será esta a ideia contida na frase de Leonardo? Enfim, nesta presunção fiquei até esbarrar, recentemente, num vocábulo velho cuja semântica se alarga, ao que suponho, com um significado novo. 
Os dicionários registam-no assim: “escotoma s. m. (med.) mancha negra ou brilhante que, na doença da retina, se forma diante dos olhos; do gr. skótoma, «vertigem», pelo lat. trad. Scotoma, «id.»”. Outras fontes agregam as derivações “escotoma psíquico” e “escotomização” (“supressão de uma parte do campo visual” e “mecanismo psíquico inconsciente”), sempre em ligação com a oftalmologia, e também “escotópico”, relacionado com a visão em que só são impressionados os bastonetes da retina. Mas aparece agora o neologismo que usa escotoma para significar o fenómeno visual que dá vida à linha e atrai o olhar para a mancha no limiar da imagem (no sentido em que os olhos vêem o que o cérebro quer ver).
Ninguém se atreve a garantir a interpretação correcta da frase mas a ideia de Leonardo parece intuir ali um segredo conhecido e estudado muito mais tarde. Nada surpreendente, afinal, no caso do renascentista repleto de prodígios. Pois não continuamos parados diante de milhentas mona lisas no museu imaginário a inquirir se foi pintada por Leonardo e quem retrata, se é homem ou mulher, se sorri ou se…?!

1 comentário:

Arsenio Mota disse...

O texto supra regista leitores constantes desde que foi publicado. Em intenção desses leitores, proponho um acrescento ao tema. A retina, nos olhos de um feto, forma-se no útero materno quando se forma também o cérebro. Daí a tão profunda ligação da função visual à função mental. Vemos com os olhos e, indissociavelmente, também com o cérebro.