quinta-feira, 5 de março de 2015

Aureliano Lima: evocação

Evocar Aureliano, artista do ferro, da pedra e do gesso (à espera do bronze) não menos que da palavra, faz-me recuar aos meus anos ’60 portuenses. É evocação grata, justíssima, necessária. Porque Aureliano, escultor e poeta, se sumiu pelos buracos da desmemória nacional que avulta tanto quanto o país se encolhe. Mas Serafim Ferreira e eu convivemos bastante de perto com ele nas tardes sabatinas que passámos à mesa do café, onde, com outros amigos, tínhamos conversas e discussões infindáveis.

Artista inquieto, em procuras constantes, Aureliano Lima (Carregal do Sal, 1916 - Vila Nova de Gaia, 1984) saía de Gaia, onde se radicou em 1958, buscando calor humano na outra margem do rio Douro para atenuar a solidão angustiada ou a solitária angústia em que vivia e criava.
Destes contactos cordiais resultaram visitas aos seus trabalhos e uma ida, em 1983, a Santa Maria da Feira para a inauguração da sua monumental “homenagem a Fernando Pessoa”. E resultou também um texto que publiquei no suplemento Artes e Letras do “Notícias de Guimarães” em 15-01-1967. A Censura ao serviço da ditadura cortou-me nele duas partes importantes que justificavam as posições artísticas do Aureliano, e com esses cortes reapareceu transcrito no Suplemento do “Badaladas” de Torres Vedras em 29-04-1967. Repeguei agora nesses papéis (que saudades do tempo em que, havendo Censura prévia à Imprensa, havia suplementos destes nos jornais!) e consegui reconstituir o escrito original mutilado pela Censura.
Aureliano cursou o seu rio subjacente do Poema e escavou no seu poço a forma da Escultura. Tinha mãos finas, nervosas, leves como asas de pássaro. Até quando prendia nos dedos um cigarro, movia-as como se modelasse no vento um voo que rasgava de luz o espaço. É esse voo perseguido que vemos nas obras de Aureliano e que nelas ficou plasmado. Voo imponderável? Nessas formas de movimento no espaço encontramos o artista a respirar - vivo!
De facto, Aureliano manteve longos anos as duas actividades paralelas. Rio Subjacente, o seu livro de estreia (1963), conquistou, inédito, um prémio. Muitos anos depois, uma exposição de escultura na Academia Domingues Álvares, no Porto, suscitou desencontradas reacções. Em Coimbra, começara a desenhar (camponeses, composições alegóricas, etc.) e a esculpir (bustos de Antero, Camilo, Afonso Duarte, Pascoaes, Torga, Pessoa) segundo concepções naturalistas com toques algo expressionistas. Surgia então, pujante e polémico, o movimento neo-realista. Aureliano continuou a desenhar e a esculpir. Como poeta, foi atraído pela expressão simbolista, paredes-meias com o surrealismo - e a sua poesia, meia dúzia de títulos, decantou-se. Logo, esculpindo, impelido por uma força latente de síntese, de tendência geométrica, desaguou no vasto mar do abstraccionismo, onde ficou como precursor de obra em ferro.
No fim dos anos ’50, era muito vivo o debate sobre as fronteiras possíveis do realismo e do neo-realismo. Por mim, já então percebia nas obras que reflectiam as tensões e as contradições dominantes na sociedade os elementos realistas que uma análise verdadeiramente dialéctica não pode menosprezar. Mas Aureliano seguiu no seu caminho. Culto, aberto ao diálogo, participante e coerente ao menos com as suas próprias contradições, o escultor acreditou que os trabalhos que lhe saíam das mãos vibráteis falavam do (e ao) mundo da sua época. Como ele gostava de repetir, cursou o seu rio subjacente, escavou o seu poço; o que criou, em gesso, pedra ou ferro, contém reminiscências antropomórficas com halos de poesia desagregada e de raízes embebidas na esperança do futuro do homem. [Imagem: busto em bronze pelo escultor mestre Manuel Pereira da Silva.]

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