quinta-feira, 26 de março de 2015

Folhinha ao sol


Uma pequeníssima vibração. Ou mero pressentimen-to? Todavia, a ponta de uma raiz, e logo outra e outra, estremunharam. Saíram da letargia a indagar: o que acontecia em redor?
Quase nada. O terreno deixara de ser pisado havia tempo e chuvas abundantes tornaram-no frescal.
Sumidas na escuridão da terra, algumas raízes do esporo perceberam a subtil mudança e aproveitaram-na. De facto, sabiam tudo quanto deviam saber. Cresceram na direcção certa, a porta rente ao passeio da rua que abria o terreno a quem entrasse. Mas a porta, imobilizada, cobria-se de musgo porque o terreno estava ao abandono.
Pela fresta da porta suspensa na moldura entrava uma claridade apetecível e foi para ela que sem erro se orientou o esporo. Metido na terra, sentiu a força do seu chamamento fazendo surgir à superfície uma pequenina cabeça.
Gente a passar tê-la-ia esmagado se antes ousasse irromper ali, rente à porta, na terra endurecida, mas agora desenvolve-se, viceja. Já aponta para a fresta um brotinho vegetal que pouco a pouco se estende e alarga. E mostra, nascente, uma folhinha. 
Tenra folhinha sem idade, que esboça um tom verdoso ainda esbranquiçado enquanto, crescendo, se aproxima da fresta para receber a iluminação vinda do exterior. Já chega à porta, a brisa percorre-lhe suavemente o dorso arqueado que aponta para a luz e cresce mais, estende-se, atravessa a linha que separa a penumbra interior do esplendor da rua, e toca com a ponta o ambiente pleno, a liberdade. 
Atinge por fim o cálido e brilhante sol. Recebe-o na parte exposta, que se expande, transformada em colector solar à ordem das raízes, e a folhinha avança mais por cima do passeio. 
Foi essa a folhinha que um cronista viu, brotando e verdejando por baixo da porta fechada. Uma folhinha carnuda, cheia de seiva fresca, à espreita, a espirrar verdura. 
O cronista sentiu um abalo íntimo. Parou. A folhinha parecia luzir de alegria no sáfaro cimento urbano, pois era, ali, a única afirmação de vida. 
A olhar, parado, o homem emocionou-se. Percorria aquela rua nos seus trajectos habituais, a pensar na próxima página que iria escrever (porque uma crónica por semana era, para ele, preocupação diária), mas sentiu-se inundado de compaixão, uma compaixão decerto tola e piegas, pois o alvoroçou a ideia de que os passos cegos dos transeuntes iriam calcar contra a dureza do cimento aquela tenra folhinha tão atrevida que assomava ao sol. 
O homem escrevia sobre os graves problemas do mundo, o perigo de uma terceira guerra mundial e a necessidade da paz, a urgente defesa do ambiente planetário, a violência que se generaliza, a justiça que escasseia. O homem, contemplativo, avaliou de repente toda a sabedoria de um esporo. Então decidiu: recusou grandiosos temas porque… a sua última página lhe aparecia escrita numa simples folhinha.

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