segunda-feira, 7 de abril de 2014

Janelas da alma

A pupila glauca, quase bovina, da máquina fotográfica pestanejou diante da janela, à frente dos olhos do seu operador e dos meus, contemplativos, ao colher da rua a imagem. Agora, premiada, faz-me pestanejar a mim. O que a guindou à tribuna das melhores fotografias?
Se os olhos já eram as janelas da alma para Rodrigues Lobo, que alma terão as janelas para assim falarem aos nossos olhos?
Na caverna de Platão, e em todas as cavernas, não havia janelas, apenas aberturas. Os palácios começaram por ter simples frestas na parede para darem entrada à luz e ao ar. Eram janelas, sem o serem completamente.
Mais tarde alastrou pelo planeta uma fúria construtora. Paredes e mais paredes, erguidas, dividiram os espaços e separaram os seres que neles habitavam. Ficámos eu-e-eles, nós-e-os-outros.
Multiplicaram-se e então as janelas, que negam as paredes, transformaram-nas sem as destruir.
A etimologia indica que a palavra surgiu como diminutivo de porta de entrada, ou portazinha, antes de significar caixilho móvel com vidros.
De facto, cada parede requer uma abertura praticável, senão aprisionaria os seus habitantes, tomando-os como moscas apanhadas na sua própria teia.
A parede é uma linha de isolamento e também uma fronteira que estabelece um interior e um exterior, dois lados que pela janela ficam em contacto e comunicação.
A janela é posto de fronteira, poro de epiderme opaca que necessita de processar trocas, de respirar através de pequenas alfândegas.
Permite ao que está fora atravessar a parede e vá para dentro sem invasão mas com filtragem e que o dentro se espalhe, até certo ponto, por fora.
Permite que olhos do interior deambulem com segurança pelas cercanias, em pesquisas discretas, sem se afoitarem no exterior. Persianas, cortinas e vidraças de vários tipos servem para deixar ver sem se dar a ver, estar fora continuando dentro, espiar a redondeza.
Pela janela entra a primeira luz do primeiro dia que não viola as retinas.
Trocámos o primeiro olhar quando estavas à janela, como pomba prestes a alçar voo. Deve ter sido alguém como tu que chorou até conseguir, depois do espelho e do pente, que as portazinhas inteiriças de forte madeira tivessem um postigo praticável virado para a rua.
À janela estavas quando poisaste no peitoril o teu seio farto, como mulher generosa que derrama sobre quem acena adeus um açafate de flores.
Nas janelas escancaradas brilham as colgaduras dos dias de festa.
E quando, na noite de S. Silvestre, por aí os trastes velhos caíam arremessados na rua, era também um passado e um futuro que a janela estabelecia sobre a linha de um interior e um exterior já instituídos. E tudo decorria com a sem-cerimónia que dispensa anúncio de “água vai”, despejo feito.
As defenestrações, de Praga por exemplo, exprimem também esse repúdio terminante do que é velho e aparece condenado e a procura do novo mais prometedor, na decisiva fronteira que cada janela estabelece. /.../ [Texto incompleto extraído do meu livro Som de Origem, 1ª ed. em papel: Lisboa, Livros Horizonte, 1984.]

terça-feira, 1 de abril de 2014

Anunciação

Subitamente, hoje de manhã, ao dar com os olhos na rapariga, senti: a Primavera está a chegar!
Esquecera-me de que o Inverno haveria de terminar por fim e ela limitara-se a erguer a mirada do livro quando abri a porta do café, trocando comigo um breve olhar vagamente cúmplice.
Ao sentar-me numa mesa próxima, novamente os nossos olhares se cruzaram em reconhecimento ou saudação. Encontrava-a ali a estudar, matinando numa pequena rima de compêndios, em companhia de calculadora de bolso que, à sua direita, me afligia como um quadro torto na parede e, por isso, sem nos conhecermos, quase nos conhecíamos.
Mas o olhar da rapariga, esta manhã, parecia diferente. Uma anunciação. Vejo-a a sorrir (para si mesma?) e percebo no ar um frémito novo, seivas e sóis a acordar, uma ebulição recôndita a prometer aleluias.
Porém, não entendia o que a tornava diferente. Os seus olhos cor de mel cintilavam, irradiando luz como janelas iluminadas de uma casa aquecida por dentro. Neles, no clarão do seu brilho, podiam ver-se duas figurinhas de crianças a correr entre estevas para colherem flores e uma mulher de corpo maduro voluptuosamente reclinada, em doce expectativa. Apenas isso.
Todavia, aquele olhar abarcava as coisas nos seus lugares, aceitando-as com simpatia; saudava o ressuscitar da natureza no termo da hibernação – concluí eu, pedindo o café e desdobrando o diário. De facto, iluminava-lhe o rosto um esplêndido luar tropical, acrescentei, observando-lhe a epiderme que, revelando a carne escondida, parecia sorrir de contentamento, e os cabelos sedosos como plumagem de rola no cio.
Certamente, o estudo “não lhe rendia” esta manhã, primaveril em excesso para tanta da nossa invernia, e eu tardava a folhear o jornal novo sempre velho, procissão gemebunda de tristuras e misérias. Sabia bem contemplar a rapariga, recebê-las nas retinas como um aceno alegre e cordial, indício cósmico (enganador) de que os piores tempos já haviam passado.
E a rapariga não repelia a observação, agradava-lhe até, como se alimentasse no seu corpo uma fome secreta. Retribuía-os francamente, achando-os naturais, só não compreendendo bem, por certo, que ambos, cada um à sua mesa no café hoje quase ermo, estivéssemos em contacto através de olhares e, como idiotas, não nos apresentássemos a dizer olá, a comunicar oralmente.
/.../ Ela ia afundando mais e mais o rosto nas páginas dos seus livros, rabiscava apontamentos agora com expressão quase diligente. Erguia os olhos cor de mel e passeava-os pelo café, corria-os pela rua através das vidraças. Pareciam rir-lhe na cara luminosa. Ela sabia, de certeza, que “era” bonita, mas provavelmente diria que “estava” bonita, pois as mulheres poucas vezes acham que atingem o ser, basta-lhes o estar.
Eu tinha a sensação reconfortante de que a Primavera já triunfava sobre o frio e a noite, mas comecei a sentir também, de novo, que esta Primavera não nos traria os esperados frutos nem viria como devia vir. [Texto incompleto extraído do meu livro Som de Origem, 1ª ed. em papel: Lisboa, Livros Horizonte, 1984.]                

quarta-feira, 26 de março de 2014

quarta-feira, 19 de março de 2014

Pensamento débil

Os nossos tempos não vão favoráveis à afirmação vigorosa do pensamento. Criações mentais desejavelmente inovadoras parecem recostar-se numa passividade acomodada ou numa conformação indiferente ao que de renovador mais importaria. O panorama como que adormece numa espécie de estagnação pantanosa ou mesmo numa real decadência.
Onde pode o observador encontrar hoje um sinal de rasgada afirmação? Percorre os diversos sectores da criatividade intelectual e o que se lhe depara? A mentalidade tecnocrática, dedicada ao serviço das empresas, sufocou a cultura humanista obliterando a relação de cada pessoa com a espécie integrada na natureza, nosso berço.
Ia prosseguir, desenrolando o fio do meu discurso, mas, neste ponto, parei a escrita. Caiu-me o olhar numa frase em crónica de Vasco Pulido Valente que parecia exprimir a ideia que começava a enunciar. A frase: “A autoridade da ‘inteligência’ desapareceu.”
Mas, então, de onde emana a autoridade que continua a exercer-se nos variados planos da vida social se a autoridade da “inteligência” desapareceu? Se o regime republicano e o sistema democrático continuam vigentes, incluído o sistema da justiça, que processo terá conseguido descartar a preclara “inteligência”? Substituiu-a acaso a mediocracia eleitoral?
Não poderia eu dizê-lo melhor, com menos palavras nem com maior eloquência. Mas a brutalidade da expressão justifica-se pelo seu inegável realismo: a “inteligência” (que outrora distinguíamos como “intelligentsia”, ou escol, elite dominante) perdeu o seu lugar, autoridade, prestígio. É facto tão notório que espalha pela minoria realmente culta um calafrio visceral e um alarme.
E que espécie de autoridade será essa, declaradamente não iluminada pela “inteligência”? Decorrerá da mediocracia da mediocracia eleitoral e poderá ser ainda legitimável como “civilização”? Ou a monstruosidade contida na síntese de VPV, ao causar-nos um estremeção de profundo horror, também nos adverte do sentido de uma geral deriva política em crescente afirmação da direita (da austeridade programada, do empobrecimento do povo)?
Vejamos. Do que se trata não é, afinal, da abolição da “inteligência” da autoridade (do poder governante, da justiça). É da imposição liminar do seu inverso, ou antónimo, pois a inteligência (democrática) que nos tem governado vai sendo absorvida por uma diversa “inteligência” estratégica que se declara presente e omnipotente.
Por este caminho, quanto tempo faltará para se repetir o memorável caso dos anos ’30 do século passado? Decorria a sangrenta guerra civil espanhola, provocada pelos franquistas contra o governo republicano eleito, patamar preparatório da Segunda Grande Guerra. Quem falasse de “cultura” punha franquistas a puxar da pistola… [Imagem: “Zé Povinho com sua albarda”, pintura de Rafael Bordalo Pinheiro.]

quarta-feira, 12 de março de 2014

Costumes bárbaros

Por favor, digam-me que estou a confundir os aspectos, a exagerar as proporções. Principalmente, deixem-me ao alcance dos olhos o que negue as sombras que os vai cobrindo de tristeza. Porque, para mim, não tem dúvida nenhuma, os nossos costumes entraram em decisiva barbarização.
A barbárie estendeu-se ao ponto de banir, por inúteis, dos comportamentos sociais da “cultura geral” massificada, preceitos e exigências mínimas de convivência humana. Antigas regras e maneiras preceituadas, varridas, deram lugar às errâncias de um voluntarismo desbragado que sobreveio das lacunas de formação. Vejamos: quem se lembra hoje dos guias, manuais e compêndios de civilidade, educação e boas maneiras que “toda a gente” leu até meados do século XX?
Eram leituras básicas, obrigatórias, numa época em que o sistema escolar e o ambiente familiar impunham deveres, gestos e estilos praticamente em todas as particularidades do dia-a-dia (à mesa, caminhando na rua, convivendo, escrevendo cartas) sob pena de grave sanção. Quem era ou queria ser “civilizado” seguia orientações aplicáveis a cada situação que, sem chegarem a ser “de etiqueta”, valiam como emblemas de boa educação compartilhada. Actualmente, a delicadeza demonstrada arrisca-se a valer como sinal de fraqueza, inferioridade ou subalternização perante um outro amiúde propenso a mostrar arrogância, superioridade agressiva, vontade de vencer, como avançados que, no campo de futebol ou jogando a feijões, rematam para ganhar, nunca para saírem derrotados.
Pela idade, tenho fácil memória dessas leituras comuns no meu período juvenil e, a propósito do tema, fui pela memória conduzido até um livro dos tais, O Perfeito Cavalheiro, assinado por Sevim Akmen e traduzido por M. Osswald (pseudónimos?; 317 pp., Porto, 1949). Folheei-o um pouco para sentir como se distinguem hoje, cruamente postas preto no branco, as duas épocas que levo de vida. Larguei-o, arrependido, ouvindo outros idosos em queixas porque não aturam “isto” e não têm mais mundo para onde fugir.
A competição acesa contaminou as mentalidades e os costumes. Se, caído do céu, um cavalheiro se revela aqui ou acolá, é encarado como figura saída de museu, relíquia talvez agradável mas também ridícula. O tempo já não dá para pieguices de bom-tom, o próprio índice de civismo nos espaços públicos baixou tanto quanto subiu a indisciplina nas escolas, a conflitualidade nos meios familiares, a violência nas relações laborais, o impudor nas promessas dos políticos…
Ora não é só a crise que faz reinar a competição; é o sistema socioeconómico de base (capitalista) que desumaniza as relações sociais e as próprias pessoas. Desvaloriza os indivíduos transformando-os em meros consumidores, “máquinas” produtoras-reprodutoras, simples peças descartáveis das bases de dados ou das estatísticas. Que lugar resta para a civilização em relações sociais norteadas pela regra do “cada um por si”?

quarta-feira, 5 de março de 2014

Algumas mudanças

Estão à vista do excelentíssimo público algumas novidades há já uns dias mas, ainda assim, não dispensam umas breves palavras de apresentação. As novidades aparecem na página “Estante de meus livros – links” com entrada na barra ali por baixo do cabeçalho do blogue. Esta nota justifica-se para explicar desde logo que são livros digitais, ebooks.
Todos de minha autoria, sim, agora em edição revista e por vezes com capas renovadas. Contados, são nove, de vários géneros: contos, romance, crónicas, estudos e ensaios. Estiveram aqui antes acessíveis quase todos pela entrada “Os meus amigos podem ler”, onde acumularam milhares de leitores – e onde se mantém os três títulos de autoria alheia (Oscar Wilde e Anónima) ou partilhada comigo.
Voltaram agora à plataforma que os albergou e da qual saíram para tentar a experiência da Amazon, onde permaneceram uns meses. Quer dizer, voltaram à ISSUU de modo que decidi alterar a forma antiga que no blogue os apresentava. Em vez de colocar as capas dos livros (e links) na coluna à esquerda em “escada a descer”, criei uma página especial onde aparecem agora mais bem arrumadas.
A separação dos três títulos de autoria alheia é sem dúvida conveniente, tanto mais que, futuramente, irei agregar ao conjunto dos nove actuais outros ebooks, isto é, livros meus que circularam impressos em papel e logo desapareceram do mercado. (Será preciso recordar neste ponto as vicissitudes por que passou ultimamente a edição literária em Portugal?) Aconteceria então que a “escada a descer” iria alongar-se afundando-se até provocar tonturas…
Outra separação não menos conveniente foi introduzida. Na Amazon vão continuar, enquanto for possível, os meus livros para crianças - apenas esses. A lista actual também ali será ampliada, o que vai requerer digitação de textos impressos, novas ilustrações…
Quem quiser adquirir mesmo os meus ebooks à venda na Amazon (repito, só para crianças) terá que os pagar posto que a preços simbólicos. Na ISSUU, porém, para quem queira lê-los online ou descarregá-los, são gratuitos; oferecem ali uma terceira opção, uma "impressão" a pagar pelo preço indicado, que o não interessado pode dispensar. Em ambas as plataformas, o acesso é possível e fácil, esteja o leitor em qualquer ponto do globo conforme verifico: vou tendo leitores nos EUA, Espanha, Itália, Japão, Dinamarca, Brasil…

segunda-feira, 3 de março de 2014

Morada em mudança (casa, mobília, tudo): foto sem identificação colhida da net