A pupila glauca, quase bovina, da máquina fotográfica pestanejou diante da janela, à frente dos olhos do seu operador e dos meus, contemplativos, ao colher da rua a imagem. Agora, premiada, faz-me pestanejar a mim. O que a guindou à tribuna das melhores fotografias?
Se os olhos já eram as janelas da alma para Rodrigues Lobo, que alma terão as janelas para assim falarem aos nossos olhos?
Na caverna de Platão, e em todas as cavernas, não havia janelas, apenas aberturas. Os palácios começaram por ter simples frestas na parede para darem entrada à luz e ao ar. Eram janelas, sem o serem completamente.
Mais tarde alastrou pelo planeta uma fúria construtora. Paredes e mais paredes, erguidas, dividiram os espaços e separaram os seres que neles habitavam. Ficámos eu-e-eles, nós-e-os-outros.
Multiplicaram-se e então as janelas, que negam as paredes, transformaram-nas sem as destruir.
A etimologia indica que a palavra surgiu como diminutivo de porta de entrada, ou portazinha, antes de significar caixilho móvel com vidros.
De facto, cada parede requer uma abertura praticável, senão aprisionaria os seus habitantes, tomando-os como moscas apanhadas na sua própria teia.
A parede é uma linha de isolamento e também uma fronteira que estabelece um interior e um exterior, dois lados que pela janela ficam em contacto e comunicação.
A janela é posto de fronteira, poro de epiderme opaca que necessita de processar trocas, de respirar através de pequenas alfândegas.
Permite ao que está fora atravessar a parede e vá para dentro sem invasão mas com filtragem e que o dentro se espalhe, até certo ponto, por fora.
Permite que olhos do interior deambulem com segurança pelas cercanias, em pesquisas discretas, sem se afoitarem no exterior. Persianas, cortinas e vidraças de vários tipos servem para deixar ver sem se dar a ver, estar fora continuando dentro, espiar a redondeza.
Pela janela entra a primeira luz do primeiro dia que não viola as retinas.
Trocámos o primeiro olhar quando estavas à janela, como pomba prestes a alçar voo. Deve ter sido alguém como tu que chorou até conseguir, depois do espelho e do pente, que as portazinhas inteiriças de forte madeira tivessem um postigo praticável virado para a rua.
À janela estavas quando poisaste no peitoril o teu seio farto, como mulher generosa que derrama sobre quem acena adeus um açafate de flores.
Nas janelas escancaradas brilham as colgaduras dos dias de festa.
E quando, na noite de S. Silvestre, por aí os trastes velhos caíam arremessados na rua, era também um passado e um futuro que a janela estabelecia sobre a linha de um interior e um exterior já instituídos. E tudo decorria com a sem-cerimónia que dispensa anúncio de “água vai”, despejo feito.
As defenestrações, de Praga por exemplo, exprimem também esse repúdio terminante do que é velho e aparece condenado e a procura do novo mais prometedor, na decisiva fronteira que cada janela estabelece. /.../ [Texto incompleto extraído do meu livro Som de Origem, 1ª ed. em papel: Lisboa, Livros Horizonte, 1984.]
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