Não temos vida fora do corpo. Melhor, ter corpo é ter vida. Procura então senti-lo intensamente, vagarosamente, até se revelar o denso território dos teus limites e saltarem as primeiras interrogações. Habita-lo, ou é ele que te habita? És o corpo, ou com o corpo?
Não tens olhado quanto baste para o que se passa no seu interior, daí o espanto. Amar, porém, a vida, e fruí-la, implica amar e fruir o corpo, pois nem aqui podes separar o conteúdo do continente. E quem o ama, quem o sente ou preza? Quem, ao menos, o conhece e atende?
A mão que redige é a mesma que avança e procura o corpo dado, ardente tocha de carne, porque interrogar é apalpar o ser no escuro, entre o santo e o sarro, nesta ânsia de o descobrir por inteiro após longo adormecimento.
Eis o corpo em toda a sua apetência sensorial. Tem a forma e a duração exacta da vida que nele se faz. Todavia, poucos o assumem. E ele, mil vezes esquecido, aqui jaz numa câmara a deslado dos percursos quotidianos, à espera, em silêncio mas não silencioso, a estrebuchar desde tempos imemoriais contra as paredes da privação.
O desejo anima-o. Dizem que liberta (quando isso resulta de se desejar pouco). Nada liberta apenas e o próprio desejo é contraditório, sacode e incendeia a carne deixando-a calcinada, porque é vasto e ondulante, infatigável como o oceano. Conduz em emigração partes caras do ser, deixando-o aberto e dorido.
Porque o desejo é uma projecção generosa saída de uma solidão; é uma entrega hedonista do ser a mover-se em direcção a outro. E os desencontros são regra na divisão das encruzilhadas.
/.../ Com tudo isso, desvaloriza-se o corpo, suporte da vida, e (sem compaixão) a própria vida. Até as pessoas aparecem desvalorizadas, desfeadas. E cada vez mais falta quem esteja disponível, agradável e conversador, saudavelmente tranquilo, porque mesmo isso requer o corpo e poucos o assumem.
O corpo deixa de ser motivo de alegria. Morre às mãos de quem com ele respira. É prótese de mutilados de uma guerra invisível, fardo incomodativo que se carrega tal como o viajante leva as provisões para atravessar um deserto, rumo a nenhures.
Em tempos de antanho, o corpo era tido como a parte impura do ser. Agora a dúvida: será menor o menosprezo, tenha ele sentido diverso, que hoje o rodeia?
Devíamos ser para o corpo o que os melhores jardineiros são para os seus canteiros floridos, cultivando nele o prazer das coisas boas, saudáveis, luminosas, cálidas, alegres, e poupando-o a sensações, pensamentos, experiências não gratificantes.
Na verdade, desta ou de outra maneira, com ou sem alegria, com ou sem desprazer, a estrebuchar na câmara onde jaz ou plenamente assumido, o corpo é sempre, porque não pode deixar de ser, tocha de carne ardente. O gelo da morte queima não menos que o fogo da vida. [Texto parcial extraído do meu livro Som de Origem, 1ª ed. em papel: Lisboa, Livros Horizonte, 1984.]
Não tens olhado quanto baste para o que se passa no seu interior, daí o espanto. Amar, porém, a vida, e fruí-la, implica amar e fruir o corpo, pois nem aqui podes separar o conteúdo do continente. E quem o ama, quem o sente ou preza? Quem, ao menos, o conhece e atende?
A mão que redige é a mesma que avança e procura o corpo dado, ardente tocha de carne, porque interrogar é apalpar o ser no escuro, entre o santo e o sarro, nesta ânsia de o descobrir por inteiro após longo adormecimento.
Eis o corpo em toda a sua apetência sensorial. Tem a forma e a duração exacta da vida que nele se faz. Todavia, poucos o assumem. E ele, mil vezes esquecido, aqui jaz numa câmara a deslado dos percursos quotidianos, à espera, em silêncio mas não silencioso, a estrebuchar desde tempos imemoriais contra as paredes da privação.
O desejo anima-o. Dizem que liberta (quando isso resulta de se desejar pouco). Nada liberta apenas e o próprio desejo é contraditório, sacode e incendeia a carne deixando-a calcinada, porque é vasto e ondulante, infatigável como o oceano. Conduz em emigração partes caras do ser, deixando-o aberto e dorido.
Porque o desejo é uma projecção generosa saída de uma solidão; é uma entrega hedonista do ser a mover-se em direcção a outro. E os desencontros são regra na divisão das encruzilhadas.
/.../ Com tudo isso, desvaloriza-se o corpo, suporte da vida, e (sem compaixão) a própria vida. Até as pessoas aparecem desvalorizadas, desfeadas. E cada vez mais falta quem esteja disponível, agradável e conversador, saudavelmente tranquilo, porque mesmo isso requer o corpo e poucos o assumem.
O corpo deixa de ser motivo de alegria. Morre às mãos de quem com ele respira. É prótese de mutilados de uma guerra invisível, fardo incomodativo que se carrega tal como o viajante leva as provisões para atravessar um deserto, rumo a nenhures.
Em tempos de antanho, o corpo era tido como a parte impura do ser. Agora a dúvida: será menor o menosprezo, tenha ele sentido diverso, que hoje o rodeia?
Devíamos ser para o corpo o que os melhores jardineiros são para os seus canteiros floridos, cultivando nele o prazer das coisas boas, saudáveis, luminosas, cálidas, alegres, e poupando-o a sensações, pensamentos, experiências não gratificantes.
Na verdade, desta ou de outra maneira, com ou sem alegria, com ou sem desprazer, a estrebuchar na câmara onde jaz ou plenamente assumido, o corpo é sempre, porque não pode deixar de ser, tocha de carne ardente. O gelo da morte queima não menos que o fogo da vida. [Texto parcial extraído do meu livro Som de Origem, 1ª ed. em papel: Lisboa, Livros Horizonte, 1984.]
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