domingo, 29 de abril de 2012

O romance da Gândara

A região da Gândara - faixa de terreno situada entre a Bairrada e o Atlântico, a sul do distrito de Aveiro e até imediações da Figueira da Foz - tem presença notada na Literatura mercê da prestigiada obra do autor de Uma Abelha na Chuva. É obra reconhecidamente inspiradora, pelo que, abrindo o caminho, deixa rasto: diversos autores atuais são «gandareses» porque, também de pés assentes naquele chão, a consideram modelar. E eis a novidade: António Canteiro, com o «romance da Gândara», coloca-se ao lado do «mestre».
Com efeito, ponho na estante o romance Largo da Capella (Gradiva; Lisboa, 2012, 178 pp) junto com Turismo, Pequenos Burgueses, Casa na Duna e outros de Carlos de Oliveira. Esta nova ficção de Canteiro tem qualidades que, a meus olhos, justificam o galardão. E é, para mim, o «romance da Gândara» porque evoca o povoamento da Gândara, tema novo mas facto histórico  não antes abordado no plano literário.
A narrativa centra-se no povo (em parte ido da Bairrada) que por ali se radicou e principiou a desbravar e a fertilizar as terras ermas e arenosas e assiste depois à construção quase miraculosa de uma capela num largo de povoação também surgida por estranho sortilégio. Organizada em torno do seu motivo, a narrativa ganha matriz épica, prendendo o leitor com o mergulho nesse passado onde encontraremos alguma base documental de mistura com algo mítico. Mas o que mais avulta nestas páginas é a maturidade magnífica atingida pelo prosador.
Depois de Parede de Adobo e Ao Redor dos Muros, os romances anteriores, e de publicar poesia, António Canteiro surge de facto na plena posse do seu talento narrativo. Nesta obra mais recente ecoam as vozes do povo gandarês, de memória calejada pelas agruras da vida, de modo que deixa a fulgir o estilo apurado da sua escrita. A própria arquitectura do romance é interessante, pois alinha por ordem alfabética, de A a Z, as 24 partes dos seus 12 capítulos (assim eu identifiquei também os contos de umas «ficções na Bairrada» quando, em 1987, soletrava esta minha região natal, mas avancei apenas até ao O).
Porém, o «romance da Gândara» deixa-me numa dúvida. António Canteiro regista um certo linguajar quotidiano da região. Por isso tem o cuidado de rematar o volume com um glossário de termos (apenas 25) com semântica ou origem especial. Admite o Autor, portanto, que se desviou um pouco da norma culta da língua, posto que tal seja um pormenor.
Questão complexa e naturalmente controversa. Mas, em última análise, trata-se da matéria expressiva do escritor para a criação literária e tão relevante que me aproxima de dois casos singulares. Aquilino Ribeiro embebeu a sua obra numa escrita vernácula de puro quilate e sabemos em que situação tristonha ela está; Carlos de Oliveira não cedeu à fonética popular gandaresa e, contrastando, essa obra continua viva, circula, inspira...

2 comentários:

Anónimo disse...

Caro Arsénio:

Depois de ler a sua recensão ao “Largo da Capella” fiquei sem palavras… Por isso, vou atrever-me a repetir algumas outras que escrevi numa mensagem que enviei aos amigos na altura que este romance foi editado, no pretérito mês de março. Aqui vai: o escritor, como o pintor, o escultor ou o marceneiro, num trabalho solitário e enredado nas malhas do tempo, produz o objeto de arte, ficando a contemplá-lo com espanto, com o seu olhar crítico nos olhos do outro, que se deixa tocar pelo que vê na sua frente.
O artista (neste caso o romancista), que escreveu e editou o livro, deu por encerrada a tarefa que tinha em mãos, findou um ciclo, mas ficou a vaguear por ali, atento, transportando uma sensação mista de dever cumprido (ainda, não totalmente), pois a razão de ser do objeto que criou, não atingiu o seu fim, que é, em suma, produzir efeitos de cultura do outro.
“Largo da Capella” é um boneco articulado de muitas peças, que parecem soltas, desengonçadas e sem atavios, mas dizem muito da essência das pessoas que elas são. É um produto simples, do coração, para todos os que queiram ler-me lendo os outros, lendo cada um de nós, os nossos pais, os nossos avós, dos quais provimos e de que fazemos parte...

Obrigado, Arsénio, pelas suas palavras. Estendo daqui um abraço a Idalécio Cação e ao nosso muito querido Mestre, Carlos de Oliveira.

António Canteiro

A. M. disse...

Caro António Canteiro:
Não precisava nada, nadinha mesmo de agradecer. O quê?! Gostei deveras de o ler e o que escrevi foi escrito com gosto e sinceridade. Continue em frente e em constante superação, essa será a sua forma de agradecer (assim, sim) aos amigos leitores que tem mais próximos!