Segundo leio, restam apenas três estados teocráticos no mundo. São o Estado do Vaticano, o Irão, país dos ayatollahs, e Israel. Mas este vai ao ponto de entronizar a religião como elemento constitutivo do próprio Estado, identificando e agregando não cidadãos enquanto tal mas crentes e praticantes da Tora.
Os outros países, sendo mais ou menos laicos, organizam o Estado de muito diversas maneiras. De facto, o desenvolvimento dos povos e as mudanças das mentalidades e dos costumes provocou a evolução geral das estratégias políticas. Os hierarcas da igreja dominante não coroaram mais os reis de antanho nem, por exemplo, os governantes impuseram mais barretes cardinalícios.
Assim, parece ter-se imposto, desde o fim do século XIX, uma tendência crescente para afastar a religião da esfera dos estados. O laicismo correspondeu a esse desígnio incluso em Portugal sem conseguir, no entanto, iludir deveras a influência da igreja dominante. A Católica mantém entre nós a primazia em muitos aspectos da vida nacional, de modo que deixa ver ainda hoje o poder estatal bastante subordinado ao poder religioso.
Em tal contexto, vem à memória um livrinho publicado em Portugal em Novembro de 1970, intitulado “Sobre a Religião”. Lembro: Marcelo Caetano era presidente do Conselho desde 27-9-1968 e o país debatia-se entre a continuidade ou a evolução com tamanha ânsia que rebentava as baias da repressão da ditadura. Ora, se o tema do livrinho era melindroso, atente-se no seu autor: V. I. Lenine.
Naquela circunstância, exagerando possivelmente, direi que a obra causou um grande impacto. Mas faço declaração de interesses: fui o tradutor e editor o livro (estreou, por sinal, as efémeras Edições Razão Actual). Singularidade: uns tantos exemplares foram apreendidos nas livrarias pela PIDE (os livreiros mandaram os autos de apreensão) mas o livro, sem reedição, acabou por não entrar na lista dos proibidos!
Traduzi o texto do espanhol, que encontrei publicado em Cuba, em volume com prólogo de Francisco. Era uma recompilação de vários artigos de Lenine (mais duas cartas dirigidas a Máximo Gorki) datados de 1905 a 1922 que expõem o seu pensamento acerca do tema religioso. Uma ideia essencial percorre a obra: “Nós exigimos que a religião seja um assunto privado relativamente ao Estado […] O Estado nada tem que fazer com a religião; as sociedades religiosas não devem estar ligadas ao poder do Estado. Qualquer pessoa deve ser completamente livre de professar a religião que lhe agrade ou não aceitar nenhuma religião, ou seja, ser ateu” (pp 33-34).
Entretanto, a ideia da separação dos dois poderes tornou-se bastante consensual, ao ponto de atravessar o espectro político-ideológico da esquerda à direita. De facto, uma eficaz e rigorosa delimitação dos poderes das duas partes transformou-se numa aspiração dos povos. Desejam o fim da intromissão da influência de uma parte sobre a outra para que saia favorecida a maior transparência do processo de tomada das decisões democráticas. [Imagem: desenho de Almada Negreiros (1893-1970)]
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