segunda-feira, 4 de julho de 2011

Pois, sem diplomas!

Cuidar da imagem não é só ter carrinho de boa marca para que saibam quem somos ou deixar cair sobre a testa uns cabelos displicentes. É bastante mais do que isso, toda a gente que se preze o sabe falando, com língua de pau, «à política». Mas que fazer,  se há sempre alguém extraviado como se andasse neste mundo sem querer a sério fazer parte dele.
Contra mim falo assim falando. Fui capaz de publicar aqui umas linhas parece que inesperadas ou estranhas e mesmo algo escandalosas, numa crónica que escrevi à sombra no Verão do ano passado e que desde então é visitada regularmente por leitores não sei se curiosos ou incrédulos. O caso está todo na página «Sem diplomas».
Mas devo explicar que os bloguistas têm, se quiserem, informação sumária de alguns índices estatísticos deixados pelos seus visitantes. Nada de especial, é claro. Todavia, esse recurso indica-me como aquela página continua a ser frequentada.
O pormenor é-me grato e, no entanto, pergunto-me o que haverá ali de especial (inquietante?). Fui lá agora reler o escrito e... Ouvi então, sussurrada por cima do ombro, uma advertência singular: «Foste descarado, ficaste na rua sem cara».
Engoli em seco e quedei-me na dúvida. Enrodilhados como andamos nas subversões correntes (pela regra: centra a tua vida no triunfo pessoal), teremos já coragem para achar escandaloso, portanto descarado, quem afirma um simples elemento factual do seu percurso biográfico? A emoção parece vir da frase: «estar na literatura, tal como estar no jornalismo, requeriam tão só, no 'meu tempo', saber de experiência feito.»
Hoje, consabidamente, não é assim. Mas já foi conforme digo: os autores literários e os jornalistas afirmavam, praticando, as suas capacidades pessoais, pois naquele tempo não tínhamos cursos que a tal habilitassem. Fiquei, pois, sem diplomas por muitos anos, embora tenha e possa mostrar um monte de papéis luxuriosos.
Por todos os motivos, aquele tempo é inesquecível para quem o viveu. Os cursos de Letras existentes não serviam então para formar escritores, formavam professores. Os autores literários portugueses da época podiam ter cursado Letras - casos de José Régio, Vergílio Ferreira entre tantos outros - mas isso devia-se à simples coincidência de a formação profissional adquirida coincidir com a vocação.
Uma quantidade de escritores dos maiores do século XX tornaram-se admiráveis sem qualquer curso específico. Eram engenheiros, como Jorge de Sena, ou médicos, como Fernando Namora, Bernardo Santareno ou Miguel Torga, ou, noutros casos, não tinham sequer chegado à Universidade. A preparação atinente à sua vocação obtinham-na por via autodidática, isto é, lendo e escrevendo, logo, mostrando o que valiam e fazendo-se estimar por isso.
As licenciaturas (sobretudo as de feição tecnológica!) tornaram-se tão vulgares que pode resultar chocante que um autor literário travestido de jornalista veterano (ou a inversa?) se declare sem uma pelo menos, para disfarçar. Mas, cá por coisas, eu ando a preferir ler  ou reler os autores de há mais de trinta anos e a sentir quanto ganho com isso.  Convém lembrar, ninguém perguntou a José Saramago nobelizado que escolarização tinha, perguntaram-lhe, sim, como iria ele usar o dinheiro recebido do prémio...

2 comentários:

Maria Paz disse...

É verdade. Também sou do tempo em que as profissões se iniciavam pelo rés-do-chão e a quem encontravam capacidades iam subindo os degraus, alguns até ao topo. Isto em algumas profissões. Quanto aos jornalistas e escritores confesso-lhe aqui que em 1972, com 18 anos, fui convidada para ir trabalhar para o jornal o Século, por uma pessoa mais velha que eu, talvez por achar piada à minha irreverência, rebeldia e interesse por tudo o que me rodeia. A família não permitiu ameaçando até que alguém ia ter um ataque de coração se eu ficasse por Lisboa. Sendo assim não aproveitei a oportunidade.
Agora é preciso diploma para tudo. Outros tempos a que me custa adaptar. Quando era jovem, no tempo da outra senhora e quando reunia com outros jovens e menos jovens para falar sobre os problemas da época, já se falava que os cursos em Portugal eram demasiado técnicos formando muitos engenheiros de gabinete e que seria necessário inserir o aspecto prático mais precocemente; alguns cursos nem tinham qualquer aprendizagem prática. Com o 25 de Abril as mudanças foram no sentido contrário. É a vida.

A. M. disse...

Olá, cara amiga Maria Paz!
Agradeço o seu testemunho, que documenta e ajuda a compreender um passado ainda próximo mas que, pelo que se vê, parece já remoto, como que diluído numa Antiguidade primeva.
Quanto a si própria, apenas posso desejar que conserve essa «irreverência, rebeldia e interesse por tudo o que [a] rodeia». É, sem dúvida nenhuma, o que mais escasseia nas novas gerações, não acha?!