sexta-feira, 3 de maio de 2013

Um fio de água na rua

Ando para cá e para lá, a pendular na companhia deste fio de água, pequeno regato que flui silencioso rente a meus pés. Sei que desce lá do cimo e, pela inércia do seu peso, vem ganhando força até surgir no caminho diário do meu ir e vir. É água viva, linfa vital, de céu azul espelhado em revérberos niquelados na corda do seu dorso.
Não vejo pássaros a poisar por aqui, sequer a meter um bico da corrente límpida. As pessoas que passam também vão distantes como pássaros ainda que sem asas nem voo. Ninguém parece ver o que eu vejo, este fio de água aqui tão inesperado que se torna invisível senão mesmo inacreditável.
Também inacreditável foi o ribeiro da minha meninice aldeã que mais tarde soube que fora, um século antes, rio bastante para ter ponte. Espalhei, contente, a novidade e enfrentei dúvidas, incredulidades. Documentei o que dizia, apontei o vale aberto e o assoreamento, e a aldeia continuou duvidosa ou indiferente ao assunto.
Para certa gente, não é fácil acreditar no que pode ver de olhos abertos (ainda que, de olhos fechados, acredite por vezes com toda a força!). Estou a comprová-lo de novo, aqui, na rua, vendo o fio de água, pequeno regato que acompanho passo a passo. Corre ligeirinho no minúsculo vale em suave declive aberto entre a pedra do lancil do meu passeio e o piso de asfalto abaulado, beirando os pneus dos automóveis estacionados, empoçando ou esbarrando em detritos, plásticos e papéis, e avançando até encontrar, lá adiante, uma sarjeta onde forma pequeno lago coberto por camada de poeira fuliginosa, porque acabou entupida pelo lixo, de modo que a corrente avança até à sarjeta seguinte que as próximas chuvas vão também encontrar entupida (a vassoura municipal varre, não desentope).
Corria o fio de água desde há tempo quando vi sair do prédio (antigo, geminado) um senhor, talvez vizinho, a quem pedi licença para notar o regato: saía do prédio contíguo, provinha sem dúvida do telhado. Viu-o, entendeu o que lhe dizia, mas foi-se a manquejar, apoiado na bengala da sua indiferença. Mais tarde, tive a sorte de encontrar um jovem a entrar no prédio exacto…
Repeti-lhe a explicação. Uma habitação do último andar teria tanque de água de reserva no tecto, a bóia estaria avariada, o excesso sairia para a caleira e o abastecimento tornara-se imparável assim como a factura justificada pelo contador. Ser idoso caminhante dá nisto, experiência a mais e jeito de coca-bichinhos.
Sei que este ribeiro não irá atingir o mar seguindo pelo interior das canalizações subterrâneas das águas pluviais. Mas tenho-o presente há semanas e meses a fio, como aquilo que é, um desperdício de água potável. Em breve, quando o “ouro negro”, que é o petróleo, se cansar de poluir o planeta, será este “ouro branco” tão raro e valioso que será motivo para causar guerras… e então ninguém mais o verá correr em fio, sem reparo, pela rua…
Quem perceber neste fio de água solto um reflexo do mundo perceberá igualmente quanto o mundo à solta a si mesmo se perde.

3 comentários:

Anónimo disse...

Caro Arsénio:

Um texto tão limpo como a água que flui; crónica de puro quilate merece moldura em ouro e honra de parede no salão nobre do município que habita. Pena que lá não chegue o dito fio de água.

Obrigado pelas suas palavras,
João Cruz

Arsénio Mota disse...

Amigo João Cruz:
Sim, o fio de água não vai sequer até às proximidades das portas municipais. Corre pelo chão, modesto e silencioso como eu (às vezes!). Mas chegou-me sem dúvida a generosidade das suas palavras, que agradeço. Tanto ou por vezes mais do que a possível beleza de uma expressão literária, que eu surpreendo no que tantos de vocês escrevem, está na expressão da beleza de um sentir...
Abraço cordial.

Anónimo disse...

Caro Arsénio:

Ausente uns dias, tento agora recuperar leituras que não gosto de perder. É o caso. Concordo em absoluto com João Cruz.
Na mesma onda ecológica, relato esta: à saída do Aeroporto Francisco Sá-Carneiro, dia 30 de abril, num dos WC, vejo um "segurança" a pegar em 6 folhas de papel ("de luxo") para limpar as mãos. Pergunto-lhe, com ênfase, se ele sabe que já somos sete mil milhões de pessoas e que se todos gastássemos como ele o mundo acabaria em poucos dias. Responde-me que sozinho não vai mudar o mundo e que o Governo gasta muito mais. Mostrei-lhe que para mim bastou uma só folha e que na mesma ainda limpei os óculos e me assoei...
Grande abraço de mais um "coca-bichinhos",

Rui