segunda-feira, 16 de novembro de 2015

O petróleo do séc. XXI


Opinião piedosa será a que pretende justificar a televisão e a imprensa ocidentais que se recusam a mostrar imagens das terríveis destruições de pessoas e bens realizadas dia a dia em variados países somente para poupar as populações às cenas de tamanhas violências, tão atrozes sofrimentos. Mas a comunicação social não abdica da sua função por piedade em intenção dos seus públicos, sim por indiferença por quem sofre. O mundo enche-se de horrores entrando na terceira guerra mundial e os públicos esperam que a valsa continue nos salões onde nada mais pode acontecer.
Entretanto, acontecem maravilhas absolutamente extraordinárias que ligeiríssimos reparos merecem. Veja-se: o petróleo, energia fóssil que continua a subordinar as economias mundiais, tem mantido o preço quase pela metade apesar de – eis a primeira maravilha - o seu custo de exploração tenha saltado para cima tanto quanto os furos extractivos caíram para a fundura. Agradados, os consumidores finais só lamentam que o preço do produto no mercado não acompanhe o seu embaratecimento.
Todavia, a exploração do petróleo prossegue em alta, indiferente tanto à quebra dos lucros quanto ao problema gerado pelos combustíveis fósseis no ambiente planetário. Estará a dar prejuízo? Uma ONG anuncia agora que o Fundo Monetário Internacional (FMI) declara que os países industrializados gastam mais em subsídios para combustíveis fósseis do que em saúde - uns dez milhões de dólares por minuto!
Com efeito, os países industrializados já acordaram em subsidiar os países mais pobres com cem mil milhões de dólares por ano, até 2020 – oceanos de dinheiro que, naturalmente, os contribuintes desses países vão pagar. Mas há cientistas que responsabilizam os combustíveis fósseis pelas catástrofes climáticas, prevenindo que estas se agravarão a partir de 2020. Nesta base, os países pobres exigem aumentos sucessivos das contribuições…
Aliás, os países pobres, exportadores de outras matérias-primas importantes que baixaram de preço no mercado internacional tal como o petróleo, ficaram com as suas economias desbaratadas. O mundo inteiro parece ter entrado numa estagnação económica expansiva e crescente, transferida por capilaridade, traduzida em desemprego, pobreza e maior desigualdade social que avassala os povos dos países emergentes e já atinge os industrializados. Venezuela, Irão, Angola e Brasil, nomeadamente, apertam o cinto que, apesar de tudo, para a Arábia Saudita, grande amiga da América, continua largo.
Suprema maravilha estará em concluir que forças poderosíssimas são capazes de assim condenarem o mundo. Não têm nome nem rosto visíveis em público. São um por cento do tal um por cento de que nos fala o Outro – conhecem?

terça-feira, 10 de novembro de 2015

Ana Hatherly e Cértima

Ao receber em 1993 o espólio do escritor António de Cértima, isto é, ao manusear em sua casa os papéis e outros documentos integráveis na doação feita pela sua viúva, descobri um pequeno conjunto de folhas assinadas por Ana Hatherly e, nas estantes da sua biblioteca, os primeiros livros publicados pela então jovem escritora. Ali soube que Cértima era tio de Ana. Nasceu uns 35 anos antes da sobrinha, mas a diferença de idades não obstou a terem sido “muito afeiçoados”.
As relações de Ana (Porto, 8-05-1929 / Lisboa, 5-08-2015) com Cértima (Oliveira do Bairro, 27-07-1894 / Caramulo, 20-10-1983) são certamente posteriores a 1949, quando Cértima deixa o consulado de Sevilha e se fixa em Lisboa para se casar e retomar plenamente a criação literária. O parentesco trouxe-me logo à lembrança que o bairradino autor de Epopeia Maldita frequentou o círculo intelectual do Porto, onde tinha familiares. Nesta cidade terá composto o poema “Oração a Dionyso” publicado na primeira página do quinzenário de afirmação galega “Rexurdimento” (Betanzos, nº 2, de 16-08-1922). 
Todavia, em 1949 Ana estudava na Alemanha canto lírico, carreira que abandonou por motivos de saúde. Em Lisboa, nos anos ’50, decidiu optar pela literatura e então aproximou-se do tio, escritor bem conhecido no ambiente da época. Cértima conservou no conjunto dos papéis uma carta de Ana, talvez de Dezembro de 1953, cujo teor parece esboçar um primeiro gesto dessa aproximação em admirativa exaltação. 
Os papéis que o tio dela quis conservar são, em breve súmula, três cartas manuscritas; duas páginas em papel bíblia com texto dactilografado intitulado Le Danse de l’Oubli e autógrafo ao tio em 19-12-1956; um poema manuscrito, em jeito de improviso, datado de 11 de Julho de 1957 e a nota “Em casa de António de Cértima”; três poemas dactilografados; mais três poemas manuscritos (dois com datas: Janeiro de 1959 e 1964). 
Ana Hatherly frequentava a universidade e aparecia com os primeiros livros: uma antologia da “Moderna Poesia Portuguesa”, em 1960, que a autora baniu da lista dos seus livros decerto por causa da epígrafe de Salazar, e a narrativa O Mestre em 1963. Depois adviria um certo afastamento, também ideológico, do tio, a sua adesão à poesia concreta e experimental, o doutoramento em literaturas hispânicas, o cinema (que foi aprender a Londres), a consagração como “pintora da palavra”. Neste percurso, o traço que mais vincadamente marcou Ana foi a reserva com que manteve a sua vida pessoal. 
A relação que manteve com o tio terá sido tão discreta que, em geral, passou inadvertida, mas Cértima quis documentá-la nos papéis que guardou, assim como a existência de filha de Ana, Catherine, vítima mortal de acidente automóvel perto de Londres, em 1970. Conhecendo-os, convidei Ana Hatherly em 1994 a participar num ciclo de conferências que assinalou o centenário do nascimento do tio, mas ela recusou. Gorou-se a minha intenção de restituir os papéis à autora. 
A eles tornei aquando da morte de Ana Hatherly. Achei-os significativos. Que destino dar-lhes? 
Resolvi oferecê-los à Biblioteca Nacional de Lisboa, entidade que já havia recebido uma doação da própria Ana. Entretanto, julgo ser meu dever dar pública notícia deste conjunto de papéis, aqui e em artigo a sair na revista digital TriploV de Dezembro próximo. Podem interessar ao eventual investigador. [Foto de Ana Htherly na contracapa de «O Mestre», 1963.]


Post scriptum


O texto supra, editado em 10-11-2015, ficou para mim tingido por desgosto e tristeza. Parece que as relações pessoais estabelecidas pelos dois autores em foco, que descrevo em poucas linhas (mas remeto para o estudo mais desenvolvido que assinei então na revista «TriploV»), resulta em assunto assaz incomodativo. Ora eu, no caso, sempre me senti completamente neutro, isento de qualquer interesse particular. Lembro: dei alguma atenção a António de Cértima para assinalar o seu centenário, publiquei livro «António de Cértima - vida, obra, inéditos» (Figueirinhas, Porto,1993), etc., porque ele nascera na minha terra natal e eu corria pelo restauro do património cultural daquela região (sendo eu de esquerda e ele tivesse feito carreira apoiando a ditadura de Salazar); quanto a Ana Hatherly, respeito-a pelo seu perfil académico, de escritora e de mulher. Se algo me move no caso é apenas o desejo de contribuir para o melhor conhecimento de Ana, pessoa tão ciosa da sua privacidade que, por exemplo, nem sabíamos que tivera uma filha. Apesar de tudo, colhi fortes motivos de perplexidade e aborrecimento: a recusa da directora da Biblioteca Nacional de receber a minha doação dos documentos (recusa peremptória, inexplicável, pois a directora e a BN poderiam tratar e divulgar os papéis conforme quisessem; a publicação na revista também não correu bem, foi mais perplexidade e aborrecimento. Outras ocorrências deixaram-me a considerar o caso desagradável de tal modo que o descartei da agenda. Acontece, porém, que o texto supra tem vindo a receber constantes leitores de variados países e isso traz-me por fim a cumprir o que talvez seja uma obrigação: esclarecer o caso, encerrar o assunto. De facto, mantive-me tonta e longamente persuadido de que o estudo editado na revista digital «TriploV» era acompanhado pelas digitalizações dos documentos principais (cujo teor transcrevo). Por isso, o meu livro Inclinações Pontuais [ISBN 978-989-54234-82-49], publicado na plataforma digital da SPA em Agosto, 2018, indica no final, em nota, que as digitalizações eram acessíveis no endereço da revista, indicação errónea não corrigida. Mas os leitores eis a surpresa! podem hoje encontrá-las aqui. Finalmente! No cabeçalho, em «Página» (tem duas entradas: uma tem capas e links de meus ebooks); abram a segunda, «Ana Hatherly-digitalizações»). Entram na página e visionem as 24 imagens com o tamanho dos documentos originais. Mostram mensagens de Ana, poemas inéditos (?), duas pp em papel bíblia dactilografadas; nota do punho de Cértima em fl A4 que regista morte da filha; carta de Catherine para os tios António e Arminda, um autógrafo anotado por Cértima, etc. (a menina já projectava livros desenhando a lápis a capa). A foto que Cértima guardava no conjunto - o retrato de Catherine - já saiu no texto da revista e agora é aqui repetido. [09-07-2019]

Acrescento


Resolvi ampliar a exposição dos papéis de Catherine, filha de Ana Hatherly, integrados no conjunto deixado pronto por António de Cértima e recebido por mim junto com o seu espólio geral. Acrescento sete novas digitalizações de textos elaborados por Catherine atendendo a dois motivos essenciais: documentam as aptidões extraordinárias que a menina já demonstrava (chegam a ser aptidões impressionantes e bem mereciam referência especial); e poderão auxiliar um eventual investigador num esforço pela definição do perfil humano, como pessoa e como mãe, de Ana, detectando o que dela própria possa encontrar-se reflectido na filha. O «tio» Cértima e «tia» [Ar]Minda terão acompanhado afectuosamente o talento de Catherine, autora do poema «A Morte» (4 pp, peq. dim.) A menina enviou-o ao casal, considerando no poema que a morte «é uma ave branca e pura» e que «Mais vale entrar na vida sendo poeta». Note-se também o «romance O amor Falso» com capa, prefácio e apontamentos sobre personagens, cenários, etc., que Catherine, com 10 anos de idade, escreveu a lápis em folhas de papel costaneira usadas outrora por merceeiros em cadernos de folhas soltas.  Era papel de fraca qualidade e daí a fraqueza das imagens -, decerto sua mãe dava-lho para que ela rabiscasse. A infantil autora assume-se como Catherine d’Elche (pseudónimo?) e supõe: «Mas parece que Deus me escolheu para ser mais uma serva de arte para ele.» Também estes esboços chegaram aos «tios» e talvez a Fátima (ou Fati, diminutivo familiar), a filha do casal com quem a filha de Ana brincou. Ignoro o ano e onde nasceu Catherine, o nome do progenitor. Atentei no ano inscrito na «capa» do «romance», 1960, quando a menina teria 10 anos. Poderá deduzir-se que teria nascido em 1950? E tendo falecido em 15-01[ou 02?]-1970 (talvez já com 20 anos?!), conforme regista Cértima? Ora, em 1960, Ana Hatherly contaria uns 21 anos pois, conforme se sabe, nasceu em 8-05-1929. Quanto a mim, cingido ao factual, dispenso-me de interpretações, deixando-as para alguém que se disponha, séria e competentemente, a investigar e estudar todos os dados existentes. Se esse alguém, em tempo útil, me contactar em tal sentido obterá de mim acesso adequado a todos estes papéis. Se ninguém comparecer, prevejo desde já uma solução de mero recurso: irei levá-los em mão e doá-los ao arquivo da Biblioteca da Universidade de Aveiro, para juntar aos dois espólios (o meu e o de António de Cértima) ali constituídos por mim há anos.  Assim ficará arrumado este assunto. Missão cumprida!
Lembro que A. de C. tem nome em blogue que criei, onde estiveram presentes dois livros de sua autoria, inéditos: uma peça de teatro não representada e uma colectânea de contos, em edições digitais: «Ela e o Homem» e «Os Que Sentem e os Que Pensam». Foram retirados do blogue por perda da plataforma que os mantinha. [28-07-2019 e 26/28-11-2019]

quinta-feira, 29 de outubro de 2015

Encontro de jornalistas JN

À beira do terceiro encontro da malta JN (31-10-2015, de novo em Coimbra), recordo: apareci pela primeira vez no segundo. Falhei o inicial por impedimento que já se me varreu, mas lembro-me da pena que isso me deixou. O meu nome tinha sido agregado à lista dos contactos preparatórios pela mão do Fernando Mendes, que me apareceu a desencadear a iniciativa e que antes da concretização do evento foi tristemente levado pelas Parcas.
É bem verdadeiro o meu gosto por reencontrar os companheiros do nosso jornal e por trocar com eles um abraço. Partilhámos experiências, vida vivida e mesmo algum sonho. Mas confesso que duvido se alguns dos meus velhos companheiros terão tanto gosto quanto eu pelo reencontro e o abraço que nos poderemos dar.
Naturalmente, no jornal tal como em convívio gratificante, criam-se subgrupos dentro do grupo pela força de correntes espontâneas que crescem em liberdade. Serão expressão de simpatias pessoais compartilhadas, afinidades ou de outro «algo» humano que por vezes resiste ao entendimento, ou resultantes de simples desencontros ocasionais. Mas o facto é que «passei» pelo JN sem levar dali a lembrança de uma relação de amizade digna desse nome.
Assinalo somente o pormenor (com autocrítica: corria demais naquele tempo, logo sem tempo para acamaradar?), reconhecendo porém que me congratulo deveras com estimas ou simples considerações pessoais que sinto merecer de antigos camaradas para mim especiais. Na verdade, dei-me sem restrições ao nosso Jornal. Comecei a colaborar nas suas colunas bastante cedo, em 1954, no designado «Suplemento Literário» coordenado pelo dr. António Ramos de Almeida e, em 1960, por convite do director Manuel Pacheco Miranda, como cronista semanal e logo, em 1963, num passo seguinte, encetei paralelamente a profissão.

Escolhi-a desistindo de um lugar em biblioteca itinerante da Gulbenkian, em Chaves, que me foi proposto em dia frígido, de intenso nevão. Recusei-o e optei por me fixar no Porto. Já tinha livros publicados, algum nome literário, bons relacionamentos no meio portuense, e o jornalismo aproximava-me do que mais queria - escrever.
Tive que pagar a factura: os jornalistas tarimbados olharam-me como «literato», isto é, de algum modo, como um intruso, duvidosos se eu seria capaz de escrever uma notícia chapa cinco, uma reportagem convincente ou de fazer uma entrevista e, entre os escritores, só uns poucos acharam que terei dado algum brilho à profissão.
O Jornal morava na Avenida dos Aliados. Chefe de Redacção era o sr. Brochado; passava o tempo com novelas policiais. O subchefe, Manuel Ramos, o nosso familiar Raminhos, sempre em luta com a Censura, de manguitos enfiados até aos cotovelos, encarregava-se do expediente.
Foi abreviado aquele meu primeiro período de serviço no JN. Em Junho de 1964, a PIDE quis obsequiar-me com três meses de clausura e no regresso encontrei o ambiente geral muito carregado de antigamente, o que acabou por me empurrar para a demissão. Voltei após a democratização, em 1978. Permaneci até sair (em 1992) na «Cultura» (como editor, quando esta figura ainda não existia no país), secção que surgiu, pequenina, mas depois botou corpo.
Fui cronista regular (semanal) em diversas ocasiões - trabalho de casa, pura oferta. Fiz de tudo quanto um jornal daqueles precisava, afora, é claro, o desporto, praticando abundantemente nas suas páginas a cartilha dos géneros redactoriais. Cheguei a crer que pequei por excesso, ao ponto de cair - erro crasso! - em dizer um dia ao então director: «Gosto tanto disto que até pagava para o fazer!»
Mas, vejamos, se não estamos apaixonadamente na profissão, que sentido terá a nossa vida? Lembro o filósofo: «Escolha um trabalho que ame e não terá que trabalhar um único dia na sua vida.» Enfim, tudo aquilo já se dilui num passado que pouco ou nada interessa, pelo que torno ao filósofo para assentar: «É fácil apagar as pegadas; difícil é caminhar sem pisar o chão.»

quinta-feira, 17 de setembro de 2015

Retrato tipo passe-2


Honra-se um autor de modesta condição como a minha colocado nesta prestigiosa companhia tendo embora em conta a diferença das respectivas estaturas. Na verdade, consagrei imensas energias a uma espécie de animação cultural que, a meus olhos, sempre integrou uma certa dimensão de participação cívica pro bono. Neste sentido, creio que uma pessoa, máxime um autor, não pode negligenciar ou truncar a relação com a sua comunidade sem grave perda para si e para a comunidade.
Olhando para trás, penso ver espelhar-se no percurso que segui a coerência do que foi ou terá sido o meu crescimento. Andei longamente a encanar a perna à rã, posso dizê-lo, mas, para minha desculpa, fiquei possuído desde a juventude pela tineta do pagador de promessas que ninguém fez mas que alguém teria que pagar. Animado decerto por um voluntarismo sôfrego, este rapaz, já sexagenário, e mesmo depois, ainda acudia, peregrinando com armas e bagagens, na defesa das causas públicas que encontrava despejadas nos baldios.
Documentada ficou a surpreendente antiguidade histórica do lugar onde nasci e de alguns outros topónimos da redondeza. Pois não tende o homem a considerar o seu lugar de nascimento como centro do mundo?
Do pequeno lugar de origem pude abranger a região que o envolvia. Até meados dos anos ’80, a Bairrada era entidade quase sem referência que não fosse coloquial. O vinho e o leitão punham os sápidos à mesa. Porém, para além disso, demonstrada ficou a existência, ali, de um vasto e rico património, também surpreendente, que teve méritos para integrar a minha região natal no universo da cultura.
Estudei as questões fundamentais da informação e do jornalismo pois, a trabalhar na Imprensa, precisei de enquadrar a prática da profissão nas funções da comunicação social no Estado republicano e democrático. Parei onde estou, a apalpar as paredes da liberdade…
Debati as questões da edição literária, da crítica e da recensão das novidades, do mercado livreiro, da tradução, da leitura pública e da divulgação dos clássicos… Cuidei do Português, que por aí anda a empobrecer-se tanto e tanto carece de bons amigos que o estimem…
Frequentei alguns ateliers de artistas estimáveis. Convivi com figuras proeminentes do neo-realismo (Mário Sacramento, Óscar Lopes, Fernando Namora, Alexandre Cabral, Álvaro Salema, Mário Braga, entre tantos outros, como Ferreira de Castro). Em 1962 (remoto ano!), ao entrar nas ficções, de um varandim de outra margem acusaram-me de mostrar maior pendor existencialista do que adesão à estética neo-realista que noutras páginas defendia. Acolhi o reparo na medida em que a eclosão do existencialismo literário ocorria entre nós ao mesmo tempo, mas isso não impediu a doação do meu espólio a este Museu, onde cabe no lugar que se vê.
Em suma, pouco tempo útil me sobrou para a criação literária de maior fôlego. Volumes de contos e crónicas são, julgo, o que pela quantidade sobressai na misturada da minha bibliografia (onde até figura um dicionário de autores). Por lá ficou, em amostra estratificada, um pouco de tudo, incluindo uns naipes de “histórias para crianças” – mais contos -, resultantes de incursão também encetada em meados dos anos ’80 que acompanhei com umas ideias ensaiadas sobre a matéria. Tudo isso foi decerto a mais “infantil” (e adulta, difícil, envolvente) “brincadeira” que pude experimentar.
Que fiz eu? Confesso que vivi, direi, tomando para mim o título da obra de Neruda que traduzi. Mas, vejamos: olha que confissão! O sonho chamou-me e pelo sonho andarei enquanto anima me restar, a exemplo de quantos temperam a vida com o seu grãozinho de loucura.
Cresci rodeado de livros e com eles (agora apenas com uns poucos escolhidos), quero continuar a viver. A viver e, felizmente, a resolver por fim uns problemas de coabitação. Livrei a casa do recheio das estantes, que o mesmo é dizer: acredito numa cultura viva e na função prestimosa das bibliotecas públicas. Que os livros, com cheiro ou sem cheiro, em papel impresso ou formato digital, cresçam, cresçam sempre e nos ajudem a crescer! [Na expo, com Erika Zavala -  do México um sinal / a brilhar em Portugal]

segunda-feira, 14 de setembro de 2015

Retrato tipo passe-1

O texto anterior, inédito publicado pelo Museu do Neo-Realismo (V. F. de Xira) no livrinho ali referido, foi gesto com esta consequência: colocou-me perante um outro texto meu, igualmente inédito, também ali presente. O livrinho teve escassa tiragem, pelo que resolvo trazê-lo para aqui, dividido em dois posts.


Pessoas que tenho próximas sustentam que sou organizado, metódico. Repetem-me a opinião como se isso fosse um atributo raro, elogiável como a pontualidade que nos deixa à espera de quem a não tem. É certo que aprendi a caligrafar as letras na antiga escola primária escrevendo dentro das duas linhas mas cedo me habituei a ultrapassar as pautas azuis para salientar o poder das maiúsculas ou para desenhar as pernas dos pp e dos qq, letras pequenas com que se escreve “por quê”.
De facto, não me considero assim tão notadamente organizado, arrumadinho. Pensando no percurso existencial que fiz, vejo em mistura o que a norma dos percursos individuais separa com bastante nitidez. A mistura começa logo no período juvenil com a minha formação escolar: trabalhei estudando e longamente estudei, trabalhando.
Quer dizer, o trabalho foi a minha escola porque a Escola propriamente dita pouco trabalho me deu. Naquele tempo, que foi o meu tempo, aprendi fazendo e, pondo-me à prova, fazendo me fiz. Continuo a ser, evidentemente, o que sempre fui: um apagado e eterno aprendiz de tudo – do mundo, das ideias, da arte, da vida. A misturada que realmente me aconteceu na trajectória existencial com a preparação escolar e cultural, e logo depois com a literatura, o jornalismo, a participação cívica, continuou, continuou… Sou vizinho da Ria de Aveiro, gosto da caldeirada!
Para tudo o que me importava, não precisei de diplomas. Bastou-me querer e demonstrar na prática a competência real que prometia ou já possuía. Mas era o tempo, hoje incrível, em que a profissão jornalística não exigia curso ou formação escolar prévia (então inexistentes) e a criação literária era já o que continua a ser, a ilha do tesouro atreita a todas as abordagens.
Estou a ver ali na estante um volumezinho escrito por Carlos Ceia, professor universitário lisboeta, que põe o assunto na capa interrogando: “A literatura ensina-se?” Não se ensina, aprende-se.
Sobrou-me ousadia para expandir ainda mais a misturada. Transpus “a salto” diversas fronteiras de géneros consagrados, gostando de gerar híbridos onde deles sentia falta. Quem pode arriscar, por exemplo, uma definição cabal do que seja texto jornalístico ou texto literário?
A verdade é que a expressão escrita me cativou desde que me conheço. Quis experimentá-la, fazê-la toda minha para a amar. Derramei-me pelos seus diversos registos – o comentário ligeiro, o poema, a crónica, a ficção, o ensaio – para depois considerar, muito sinceramente, que estou no que escrevo. Aí me encontro. A pulsão da escrita associada à pulsão da leitura (duas ocupações solitárias, silenciosas) arredou-me de convivências festivas, camaradagens de grupo, cumplicidades. E não produzi senão migalhas, umas pequenas migalhas que, reunidas em monte, estarão longe de constituir Obra.
Quem assim se derramou, esmigalhando-se página a página, talvez desenhe um perfil. Aparecerá essa “obra” como “a sua vida” conforme a legenda da capa desta brochura sugere? Lembro neste ponto uma página de David Mourão-Ferreira (em Tópicos Recuperados, 1992, p 191) que distingue com especial agudeza, no plano dito da nossa “acção cultural”, duas “famílias” (assim Mourão-Ferreira as nomeia). Cito: “a [família] daqueles que vivem exclusivamente para a sua arte (quando não mesmo egoisticamente para a promoção ou a propaganda do que julgam ser a sua arte) e a daqueles que pelo contrário se entregam – quantas vezes com sacrifício de si próprios – ao serviço da Arte ou da Cultura em geral, no definido propósito de mais amplamente as fazerem usufruir por parte da comunidade a que também eles pertencem.”
David Mourão-Ferreira foi poeta, ficcionista, crítico literário, ensaísta, professor, além de divulgador de poesia, conferencista e, enfim, animador cultural de invulgar envergadura. Em sua homenagem, ponho aqui o trecho completo em foco: “Nem os primeiros, por via de regra, são os que se mostram mais exigentes com aquilo que fazem, nem os segundos os que menos têm para exprimir ou comunicar. Talvez possa dizer-se que uns são apenas o que são, enquanto os outros, além do que são, se impõem como homens de Cultura; e trata-se ainda, num caso e noutro, de algo que deriva e depende da estrutura moral dos indivíduos, do grau de percepção que manifestam ou não manifestam acerca das suas responsabilidades sociais – e, prioritariamente, da percepção e assunção dessas suas responsabilidades no próprio domínio da Cultura, em relação à própria Cultura.” [continua]

sexta-feira, 4 de setembro de 2015

Combustão humana


Estas duas palavras até podem parecer mas não são metáfora para as massas migrantes que podem fugir das devastações causadas pelas guerras do capitalismo globalista e que cruzam o Mediterrâneo já não berço, e sim, agora, cemitério da civilização. Uma crónica intitulada “Humanidade combustível” foi escrita por mim creio que em 1960 para o “Jornal de Notícias” do qual era então colaborador semanal. Porém, o regime da Censura prévia interditou a publicação e o jornal enviou-me a prova tipográfica. O texto permaneceu inédito até data recente, pois o Museu do Neo-Realismo reproduziu a prova (que guardei e depois doei, junto com outro espólio, ao Museu) no livrinho com que acompanhou a exposição documental denominada “Uma vida como obra”. Dali transcrevo os parágrafos iniciais.

“Quem pôde abeirar-se, no último Inverno, dum bom fogão de lenha crepitante e se deteve uns minutos a observar o bailado das línguas de fogo consumindo as achas, deve ter pensado que estava ali uma imagem da vida.
Com efeito, a vida é uma acha que incandesce os homens à nascença e depois, ao longo dos anos, os vai percorrendo e devorando, transformando-os em archotes ardentes. Que são os velhos senão tições de brasa morrediça no meio das cinzas? Que são os homens irrealizados, frustrados por mutilações sem remédio senão achas húmidas que jamais tiveram um calor benfazejo que as secasse?
Arder é, pois, o destino unânime de todos os homens. Existimos ardendo, consumindo a matéria que nos faz, confiando-nos à fogueira que nos habita, à vida que, afinal, servimos. Somos pasto das chamas que, empolgando-nos, nos libertam. Se há homens que se poupam à destruição, crendo ingenuamente garantir-se uma durabilidade, tais homens iludem o sentido do seu destino, traem-se de algum modo a si mesmos.
À semelhança de algumas achas que alimentam as cálidas fogueiras de salão ou de borralho rural, há homens que não “ardem” tão bem como outros. Esses não amam o fogo quanto ele revela de insano, irremediável, definitivo. Incombustíveis, o fogo da vida apenas os chamusca…
É digno de nota o facto de uma acha sozinha não arder facilmente. As achas ardem na fogueira porque fabricam e repartem calor entre si, porque se irmanizam no sacrifício capital, ajuntando-se mutuamente para guardarem no centro o potencial calorífico necessário ao atear da fogueira. Um graveto sozinho não arde porque lhe falta exactamente o concurso, a solidária adesão de outros gravetos em número capaz de fazer monte e crepitar.
Podemos aplicar este fenómeno às relações humanas. Ninguém se realiza isoladamente, eis o caso. Um homem só é sempre um homem diminuído na sua humanidade. É repartindo o seu calor fraternal que os homens dignificam a vida que é deles, mas que é de todos, enriquecendo-se termicamente”…

sábado, 15 de agosto de 2015

A parte do escriba que partiu há semanas para o Oriente era imaterial, i. e., virtual. Do Sri Lanka, antigo Ceilão, vem portador de uma pesada mas também virtual sentença: que os grandes especuladores financeiros do planeta e os governantes que lhes obedecem (e que em breve se reunirão em Paris na cimeira do clima), sejam obrigados pela opinião pública mundial a subir ao topo deste penedo a pé (não há heliporto, elevadores, apenas trilhos cavados na rocha) e a viver ali um ano exclusivamente da sua agricultura.