quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Hoje não há crónica

Sim, hoje não há crónica. A mão que escrevia pende, inútil, ao longo do corpo ou estende-se sobre a mesa e adormece. Há dias assim, vazios por tão sobrecarregados.
O dia até começava bem. O texto saía, a página compunha-se. Assim:

«O sistema democrático implantado no país há quarenta anos é hoje mero resíduo, um rótulo conveniente. No entanto, proporcionou transformações decisivas que pedem avaliação, em jeito de balanço sumário. A democratização do ensino e o aparecimento de uma cultura de massas são dois exemplos expressivos do avanço geral e logo dos recuos que o sistema permitiu com os resultados que no mesmo período se evidenciam.
Conjugados com os efeitos da concentração das empresas jornalísticas e das editoras de livros, estes dois fenómenos aparecem na base que formou, deformando-a, a realidade social portuguesa como na actualidade se nos apresenta. Massificado, o ensino afastou-se dos modelos pedagógicos de formação reconhecida, com disciplina escolar e memorização dos conhecimentos, a caminho de uma torpe facilitação; o eclipse do Grego e do Latim assinalou o completo afundamento da cultura humanística e, na onda da “americanização” da Europa, acentuou-se a viragem para um ensino tecnocrático atento às necessidades, não das pessoas, sim das grandes empresas nacionais e transnacionais. No mesmo período, a estrutura familiar tradicional foi alterada pela entrada das mulheres no mercado de trabalho (o casal teve que ir ganhar o que antes o chefe de família garantia sozinho).
A relativa ligeireza dos conteúdos escolares juntou-se à ligeireza da informação jornalística que entretanto se generalizou. Realmente, as notícias também “formam”, pois os cidadãos pedem-nas para ter opinião, e o jornalismo, vergando a cerviz, foi-se enchendo de imagens e de cores, querendo-se agradável e ligeiro, varrido de textos longos ou de interpretação “difícil”. Assentou-se na verdade única, narrativa simplificada de situações e acontecimentos cuja explicação cabal é reservada a eleitos.
O povo, maioria que elege e legitima governos e políticas, arredado cada vez mais dos assuntos que o afectam,»

Neste ponto, uma vibração íntima suspendeu o gesto escrevente. Fez o cronista pensar: quem precisava de ler isto não quer saber; quem o vai ler já o sabe. Então o homem saiu à rua e por lá se demorou vendo uns miúdos a brincar.

Sem comentários: